saltos & anéis
Passei os dias
sem consultar astros e anais
sem rever afáveis linhas
sem colar e degolar figurinhas
sem usar saltos e anéis.
Passei os dias
sem admirar postais
sem chover caleidoscópios
sem mentir que nem Pinóquio
sem lavar mãos e pés.
Passei os dias
alimentando pausas
nas entrelinhas: hi ber nan do...
passei os dias
com saudade
de sua poesia
passei os dias
com cheiro de barro
com terra entre as unhas
sem nenhuma grandiloquência
sem nenhum excesso
passei os dias
entre sorrisos mútuos
a experimentar os lábios
nas palavras iorubás
passei as noites
a contar estrelinhas
a descobrir reticências
a destituir pontos finais
passei aqui
para me saciar
neste salto
em que anelo
o meu olhar
2009 consistiu solo fecundo à atividade poética. Alguns poemas existentes em o HF diante do espelho motivaram olhares e novas composições; como os versos, in resposta, do poeta mineiro Fernando Cisco Zappa ao texto “Saltos e anéis”.
Aproveito o post para agradecer a todos os poetas e poetisas da Blogosfera pelas interações vivenciadas neste ano e desejar que 2010 nos chegue ainda mais abundante em imagens, versos e múltiplas criações.
Feliz 2010 a todos e todas!
Névoa
Busquei a essência do teu grito
Inaudível ao meu ouvido
Buscavas a amiga invisível
Busquei a pureza do pássaro
Que ascende em direção ao céu
Buscavas a companheira silenciosa
Era primavera, havia névoa e véu
Mirse Souza
in Meu Lampejo
___uniVersos femininos
Ela já não chora mais...
Seus olhos sempre marejados
Não verte a lágrima precisa.
Acha que a vida não vale nada
E segue em passos apressados
tentando antecipar a reta concisa
para decerto converter em óleo,
sagrado, a lágrima que cairá furtiva.
Se houver tempo...
se houver premissa.
by Mirse Souza
Lena Gal: Terra de brisa perfumada
Que mulher jamais aturou
reclamação de chefe mal humorado,
cantada de bêbado atormentado,
bronca de motorista mal educado
ou ciúme doentio de um namorado?
Que mulher nunca sentiu dor
do bife tirado da cutícula,
de cotovelo, parto mental,
por ter feito papel de ridícula
ou pelo fim do caso virtual?
Que mulher jamais ocultou
lágrimas de felicidade,
a sua verdadeira idade,
excesso de adiposidade
ou passar fome por vaidade?
Que mulher nunca teve que dar jeito
numa meia desfiada,
numa amiga bandida,
numa relação falida
ou numa unha lascada?
Que mulher jamais se culpou
pelo filhinho na escola menosprezado,
pela atitude do namorado safado,
por não ter ficado com o bico calado,
por bisbilhotar o celular do amado?
Que mulher nunca
quis vir monge na próxima encarnação,
nem clamou estar farta de chateação?
Lá no fundo, pronta pro que der e vier
sente orgulho por se chamar Mulher.
by Maria Paula Alvim
Indicação de leitura:
* Quem a vê... não a sabe
Quem a vê
terna e pacata
meiga e cordata
olhar sereno
não a conhece
Quem a vê
sobre a sacada
em sonhos debruçada
gesto ameno
sente que não desfalece
Seios proeminentes
escondem pulsações
olhares intermitentes
guardam rios de emoções
Quem a vê
em trajes comportados
sorriso discreto e são
desconhece que provou
o gosto doce do figo
nas vestes naturais de Adão
Úrsula Avner
desnotícias
Como veem as palavras
ou te traria a pé...
dada a cor da tua pele
que é dura da terra da cor dos teus.
Não, não...te traria mesmo de barco
Tua língua arranhada quando falas amorrr,
diz-me de onde vens-Namor-
Se as palavras aproximassem os poetas
viriam sempre de barrrco.
de-Ser-tão
aquela terra tem um olhar arenoso
Curiosidade:
A flor do mandacaru abre-se à noite. O polinizador nato dos mandacarus é o morcego (Soares Filho in O Fenômeno da Evolução).
Quefazer
Minha vida é o caminhar,
quefazer infinito.
Caminhos de pedras, retas, labirintos...
Dura e pérfida!
Fumaça passa em desalinho.
Minha vida não é a melhor amiga
Nem a pior conselheira...
É a caça do eu perdido em curvas
E a presa tátil nas vigas.
Dirão os que virão:
“Foi mar de ondas claras
em vales profundos”.
[ou...]
“Glória sem brasão
riacho de lágrimas
infortúnios”...
Eu, ao longe, apenas lhes direi:
- Enxergai as folhas no barro,
no pão.
As gotas de orvalho
no prumo,
vale sem promessa,
oceano sem direção.
*Imagem disponível no Google.
lobos
quando lobos da cidade com seus olhos de neon
sobem solitários a ladeira fria do bairro
mesmo que não tenha lua e a noite seja de ventos
pensam em suas vidas na fumaça e no uísque que deixaram nos bares
nas mulheres que beijaram e juraram ser únicas
pensam que amanhã pode ser diferente mesmo sabendo que não
entram em casa e olham suas mulheres
dormindo amassadas e quase puras e os filhos no quarto ao lado
esses lobos viram anjos subitamente
vestem a camiseta branca e escovam seus dentes
como a limpar os restos do pecado
desejam bons sonhos em silêncio
se enroscam em suas mulheres sob o edredon macio
à noite se esquecem e voltam aos lugares perdidos
beijam mais mulheres e bebem mais uísque
marcam seu território com mãos, línguas e histórias inventadas
e a lua aparece azulada e tímida
esses lobos uivam e seus olhos são de neon
Oração de solteira
Santo Antônio, me dê um namorado
carinhoso, fiel, sem ser casado
que celebre cada data importante
e me atenda antes, depois e durante
São Valentim, ser rico não carece,
mas pobretão também ninguém merece
que não associe férias a anzol
e deteste jogo de futebol
Santo Expedito, tudo é possível:
que seja forte e meigo sem ser gay,
que casar lhe seja algo factível
que nunca diga: “ Eu te avisei...”
São Longuinho, quem te procura, acha
não permita que ele fale “menas”
ou tenha as unhas sujas de graxa
se beber, que seja uma dose apenas
São João, paciência é essencial
que ele adore minha mãe, por favor
na cama, amante profissional
a TPM, trate com amor
Meu Pai do Céu, permita que eu peque
faça com que a fonte nunca seque,
livrai-me, Pai, de crises passionais
Amém. Será que exigi demais?
“é chegado o fim do ano”... muitos são os compromissos, por isso o quadro “postagem simplesmente poesia” ficará suspenso até passados esses balanços e balancetes de 2009.
**Imagem extraída do Google.
* Simplesmente azul *
há um azul abstrato
que se deita na claridade
ora discreto cordato
ora repleto de vaidade
azul que lateja entre estrelas
sobeja no mar á luz do sol
azul da chama de muitas velas
da luz que emite o farol
o azul das veias constrange
em dias azulados de inverno
um olho azul petrifica o instante
o corpo azulado fica quente e terno
a pétala azul é poliglota
a geleira azul da montanha o sabe
o azul do jeans que desbota
cobre as águas em contornos de ave
a língua azulada saliva
o amor que ficou no azul
do tempo do breve momento
do vagão que leva hálito sedento
É azul a cor de dentro
Úrsula Avner
* imagem do google- sem informação de autoria
Postagem Simplesmente Poesia (19)
Poesia na escola
Tempo (quando eu fizer 40 anos)
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem
amaria chamar-se Eliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.
Este poema é de Adélia Prado. Achei muito oportuno para essa semana
que completo a idade emblemática dos 40 anos. Não tenho problema algum, aliás, em revelar minha idade. Estou entrando naquele momento de vida em que não se tem mais vergonha do mundo.
Era uma vez...
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido
(Ferreira Gullar)
Cedo ou tarde
me seria necessária.
Quero um vestido
de manhãs ensolaradas
e sapatos alados.
destilei cicuta
um cretino
instigando, dis.puta!
Era tarde, chorei...
exorcismos, re.versos
ao avesso me vi
divino-perverso.
Mergulhei em esgoto
quebrei o mosaico,
uma vida fingida.
Cedo ou tarde, parti...
na mala um uivo
e um punhal
de saudades.
Postagem Simplesmente Poesia (18)
Per Augusto & Machina:
tumulto e racionalidade em intimidade
1. é louco ser solene.
....é lúcido ser louco!
2. se tenho, como última morada
....o som caleidoscópico da vida
....carrego matrizes, almas sombreadas.
3. meu coração de cavalo, meu ato de terra
....surrado dos demônios, ímpio em desvario.
4. quando surge de mim, fiquei varrido.
....e meu estado de coisa correu solto!
5. qualquer ambiguidade tem um tônus
....que corta toda a alma pelo avesso!
6. a dor fecunda das hostes:
....vou retomar meus laços com a vida.
(Romério Rômulo in: Abertura 1, p. 13, 2009).
Esta semana, ao retornar de breve viagem, pude sentir a agradável emoção de ter em mãos o livro Per Augusto & Machina, do poeta mineiro Romério Rômulo, lançado recentemente pela editora Altana.
O livro me fora oferecido pelo próprio poeta, que, além de me ofertar a obra com uma deliciosa dedicatória, me encaminhou mais uma de suas criações poéticas: o livro Matéria Bruta, lançado também pela Altana, em 2006.
As obras apresentam notória excelência literária e evidenciam a grandeza imagística e estilístico-semântica do poeta na captação e reverberização dos fenômenos que permeiam a existência humana e a atividade poética.
Além disso, os livros comportam excelência na apresentação visual e gráfica, incluindo ilustrações que, além de enriquecerem o suporte material, contribuem para inquietar o espírito dos leitores durante a apreciação e ressignificação textual. O que demonstra o zelo e o respeito do artista, igualmente da editora, para com a arte poética; apresentando, aos leitores, um suporte de qualidade, criativo e arrojado, compatível à beleza intrínseca à criação literária do artista.
No tocante ao Per Augusto & Machina, o livro apresenta-se composto por poemas que se distribuem em 127 páginas e conta com belíssimo prefácio, intitulado “Uma poética implacável”, escrito pela professora, crítica literária e poetisa Maria da Conceição Paranhos. Leiam-se algumas das falas da literata voltadas ao processo de criação do Per Augusto & Machina:
Romério Rômulo se movimenta num universo de contrastes, em que a experiência vivida testa as realidades estabelecidas em favor de uma lucidez cada vez maior. Suas imagens inquirem as aparências em favor da essência do viver. [...] Desde o título, Per Augusto & Machina, o poeta des-capitaliza os vocábulos, quer rendê-los, observá-los e indagá-los sem mistificação, des-convencionando o arbitrário da língua. Por augusto e sua máquina, em favor de uma realidade mais real, em favor do homem-augusto, que assim grafado, adjetivado, nos remete a um ser humano restaurado à sua dignidade (in: Prefácio, 2009, p. 7).
Na obra, Romério Rômulo dialoga com o poeta Augusto dos Anjos e desenvolve, segundo Maria da Conceição Paranhos: “Temas recorrentes como a loucura, a corruptibilidade do corpo físico, a solidão, a morte buscam sua existência na linguagem, onde ganharão consistência e força de ataque, homem e cavalo” (in: Prefácio, 2009, p. 7).
Em abril deste ano tive o prazer de entrevistar Romério Rômulo em café literário virtual no Novidades & Velharias, cuja entrevista se desenvolveu, basicamente, em torno do Per Augusto & Machina; que, na época, encontrava-se em processo final de editoração. Na ocasião, uma das questões abordadas girou em torno da loucura. A partir dos versos “de quantas nuvens se faz uma loucura? / é construída a mão que bate o prego?”, pertinentes ao poema Uma bravura regenera a noite, interroguei Romério sobre a dialética loucura-racionalidade durante o instante criador, onde o poeta argumenta:
O criador, ou criativo, é aquele que foge do tom, que surpreende. Então, a loucura é um dado. Mas, e se eu consigo organizar essa loucura? O Oscar Niemeyer não organiza, faz prédios e cidades? Parece um contra-senso, um absurdo, e é. Mas, é real. Daí termos situações como o Rimbaud, que aos 19 anos se sentiu esgotado, ou o Niemeyer que, centenário, continua operando. Mananciais e construções, no caso, são diversos. Tumulto e racionalidade, aqui, são íntimos (in: Novidades & Velharias, 19 abr. 2009).
Hoje, lendo os poemas do Per Augusto & Machina em material impresso, a ideia central que me vem à mente, e, que de certa forma confirma minhas primeiras impressões de leitura, é que se delineia, no curso da obra, uma constante intimidade. Intimidade capaz de unir mundos aparentemente opostos, porém complementares: sonho e manualidade, vida e morte, imagística e historicidade, devaneio e intencionalidade; enfim,
[1] Para saber mais sobre o poeta visite o blog Romério Rômulo e/ou leia a entrevista concedida ao Novidades & Velharias, em abril do ano corrente.
[2] Texto também postado em o blog Novidades & Velharias.
Referências
- RÔMULO, Romério. Matéria bruta. São Paulo: Altana, 2006.
- ______. Per Augusto & Machina. São Paulo: Altana, 2009.