Postagem Simplesmente Poesia ( 9)


* Canções de Lya Luft *



Odalisque Reclining on a Divan ( 1827- 28 )
By: Eugéne Delacroix


Fruto de enganos ou de amor
nasço de minha própria contradição
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluidos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.

Terei meu par de asas
cujo voo se levanta desses
que me dão a sombra onde eu cresço
_ como, debaixo da árvore,
um caule
e sua flor.

( Lya Luft )

texto sem título
In: Perdas e Ganhos - Rio de Janeiro : Record, 2004

* texto postado ( pretensamente) de acordo com o novo acordo ortográfico


Caros (as) leitores (as) ,

É um grande desafio e responsabilidade comentar a obra literária de tão expressiva e admirável autora. Todavia, de algum modo, sinto-me "em casa" , paradoxalmente confortável e intimamente inquieta, reflexiva, como a Odalisca no Divã, retratada pelo pintor francês do Romantismo- Eugéne Delacroix. Em parte, tal estado de conforto, se deve á minha identificação com o estilo e conteúdo observados na escrita da referida autora, a qual me seduz e transporta para seu rico universo interior, instigando-me a perscrutar o meu.



Lya Luft ( embora dispense apresentações ), iniciou sua carreira literária em 1980, aos 41 anos de idade, com a publicação do romance As parceiras. Além de escritora, Lya é tradutora, professora de literatura e mestre em Linguística e Literatura Brasileira.
Seu primeiro livro de poesias recebeu o título de Canções de Limiar ( 1964). Daquela época até os dias atuais, a autora vem nos presenteando com tantas outras canções através de memoráveis textos e obras literárias.
Lya Luft é voz feminina forte, eloquente; mulher cujo universo interior parece transbordar nas linhas e entrelinhas de sua escrita , como podemos observar no livro Mar de dentro ( 2002).
A escritora nos convida a refletir com ela quando registra inquietações do tempo presente, estabelecendo um diálogo constante e profícuo com seu (sua) leitor (a) a quem define " amigo imaginário ".

" Escrevo propondo uma releitura dos valores
familiares e sociais de meu tempo "
( In: Pensar é transgredir , 2004 )

É interessante notar que muitas das poesias e textos literários da autora, apresentam no título a palavra " Canção "- Canção do amor sereno ; Canção das mulheres, Canção da plenitude ...
É na simplicidade e veemência de seu canto que Lya afirma :

" O que escrevo nasce de meu próprio amadurecimento,
um trajeto de altos e baixos, pontos luminosos e zonas de sombra. "
( In: Perdas e ganhos, 2004 )

Ao contemplarmos a tela do pintor Delacroix, percebemos a mulher perpassada por luzes e sombras, retratada com paixão pelo artista. Tal obra nos remete para a complexidade do universo feminino destacado com tanta propriedade pela autora. É rica a analogia que se pode estabelecer, por exemplo, entre o espelho decantado por Lya no poema postado e o divã na tela de Delacroix, como símbolos do encontro consigo mesmo, da auto-reflexão, do voltar-se para si ; em que as luzes e as sombras se misturam , se encontram , na interdependência das partes de um todo. A Odalisca de Delacroix , aparentemente descansa serena sobre o divã, com a luz incidindo sobre parte de seu corpo, enquanto seu rosto e a outra parte do corpo, são permeados por sombras, de onde se apreende aspectos do mistério inerente á figura ( alma) feminina , retratada por uma figura masculina.

Depois de lermos e ouvirmos o belo canto de Lya Luft, destaco uma singela homenagem á autora, através do meu canto, onde sinalizo em itálico títulos de obras e textos da escritora.


Canção para Lya

Ao som aprazível da Flauta doce
em cantilena adornada de poesia
traz no dorso das palavras
o Mar de dentro
inquieto e fértil
em múltiplas ondas

de Perdas e ganhos

O ponto cego
tão visível
em túneis do inconsciente
aguça-lhe a voz
que se propaga
na Canção das mulheres
como em várias outras canções
numa perene necessidade
de ser A sentinela de si mesma
a perscrutar O lado fatal
em Secreta mirada

Ou talvez, no corpo da noite
quando esta se torna sua morada
ou O quarto fechado
com a intrepidez
de Um rio do meio
lhe impele a inventar
Histórias de bruxa boa
posto que ainda encontra em si
a menina perguntadeira
que reune Histórias do tempo
Para não dizer adeus
não agora ; pois,

Em outras palavras
o tempo é hoje
e ainda é cedo

Não há Exílio
apenas uma Mulher no palco
da vida , da história literária
que de forma coloquial
expõe seus pensamentos
sem esquecer

que Pensar é transgredir
Exibe seus talentos
suas inquietações
sem esquecer

que é feita de luzes e sombras


Por: Úrsula Avner

Lya Luft é voz feminina a entoar seu canto na literatura brasileira... É voz feminina no Maria Clara : Simplesmente Poesia


Fontes de pesquisa:

http://www.releituras.com/
Livros da autora Lya Luft já mencionados na postagem

Momento retrô


O velho violinista - Picasso, 1903


"Amor condusse noi ad una morte" Dante, Inferno



o que mais me dói agora
é ver esse infinito amor findado
é não cruzar teu olhar de outrora
agora que me conjugas passado
( perdido, posto, finado)

o que mais me dói agora
da garganta por um nó te prendo
do corpo pelos poros me escapas
agora a vida insone me apavora
( meu sonho, o teu devora)

receio que o que mais me dói agora
é perceber que na madrugada fria
só lembranças me farão companhia
agora que a ausência de ti vigora

no fundo, sinto que o que mais dói agora
é pressentir as propostas sem propósito
consentir na espera que desespera
agora que sei que a paz inda demora

o sonho acabou, te pergunto ciente
como sublimar o sentir que evapora
peço que esclareças antes de ir embora
a mim, que só te sei conjugar presente

.

* Sobre o mundo de dentro *



imagem de Julie Tremblay


Quisera esmerilhar

o sono guardado

em nuvens brancas

fazer esguichar do tempo

vontades aprisionadas

balançar as ancas

soltar ao vento

borboletas encarceradas


Quisera enxergar

um clarão no beco

Na opacidade do corpo

as matizes

Sob a pele do estrondo

o sossego

Na carniça

perdizes

(apenas) sonhos á vista


Úrsula Avner