Postagem Simplesmente Poesia (7)

fotografia de nina rizzi sobre arte pop, coleção do IVAM - Instituto Valenciano de Arte Moderna da Espanha.

texto sem título, de Danilo de Abreu Lima:

a última vez que vi malu ainda era primavera e a gente brincava dizendo assim o que é que há onde você está com a cabeça que não vê as flores na varanda do chalé nem sente as cores que se abrem junto e que derramam aromas de amoras e amores sobre nossas cabeças e narinas e esses cheiros eu carrego até hoje não sei se isso passou nem sei se isso aconteceu ou se foi apenas uma miragem imagem de um sonho ou cena de um filme ou...

a última vez que vi malu era o inverso da primavera era um inverno frio e nós dois como ursos hibernados dentro de um chalé no meio das montanhas geladas era serra do cipó ou eram os montes urais ou era no canadá nem sei só sei que as manhãs eram geladas e as maçãs não floresciam nem eu podia falar nem ela pois as mãos enregelavam quando a gente tentava apanhar as palavras saídas da boca e que se transformavam em cubos de gelo quebradiços que batiam no chão e ploft se acabavam em água fria sólida e nada ficava de sólido nem de nós no ar apenas aquela solidão indesejada aquele estar ali e de repente não saber estar e aí...

ai ai ai- da última vez que vi malu era um outono desses nostálgicos desses que bota a gente todo troncho pensando ah, outonos são aqueles do hemisfério norte em que as arvores envelhecem as folhas vermelhas que caem e formam tapetes lindos vegetais nos parques limpos e calmos ah, que nostalgia é essa desses outonos que a gente nem viveu? nosso outono era aquele dos ipês e dos apês a gente enrubescendo com sol e se arroxeando como os ipês que nos escandalizavam com a beleza insolente e crescente dos buquês coloridos só flores sem folhas aquela coisa linda e então...

da última vez que vi malu era verão e o sol ardia- ah! era verão aquela estação das propagandas, das cervejas, dos corpos nus ou quase, das caminhadas na praia, dos sol-nascentes e poentes policromáticos, das viagens a itacaré a jeri a caraíva ah...verões de sol em brasa e corpos idem mas da última vez que vi malu naquele verão não havia nada disso isso era apenas um conceito uma idéia nós estávamos atazanados com teses de mestrado e trabalhos finais e não tinhamos nem tempo de sair de casa para tomar uma cerveja com os amigos e eu me lembro de ter visto a malu ali linda com os braços cheios de livros e eu dei uma trombada nela e ela deixou cair os livros no chão tipo cena de cinema eu me agachando apanhando seus objetos ela sorrindo diáfana e...

não me lembro da última vez em que vi malu.

dalí. ele sempre se confundia com as datas. na última semana recebi uma carta de seu filho. encontramo-nos numa azul vernissage e lhe deixei a caixa postal, que, com pressa, não me podia me falar do pai naquela hora. eu o previa ali de algum modo, telas azuis. e o filho escreveu há uma semana dizendo que eu devo ter alzheimer, e o pai não sabe de mim ou de datas. e ele não tem pai.

mas ele nunca soube de datas, e é muito cômodo falar dessas doenças pós-modernas e brancas quando nada se quer falar.

nos conhecemos num teatro, não me lembro onde que nunca soube de lugares. assistíamos "as quatro estações" do vivaldi, que nada católicos sabíamos apreciar a boa música. era o primeiro dia da cataquese e fugimos juntos pra o teatro contíguo à igreja que não sei onde fica. ficamos ali agarrados, escondidos, ajoelhados a ouvir a sacralidade dionisíaca da música.

nos demais sábados daquela primavera seguimos com nossas fugas. corríamos por entre as flores e amoreiras que entornavam chalés e eu me escondia atrás de flores pra ele me encontrar com aeboca roxa de amoras, e corríamos rindo "fogo nos van goghs!" eram lindos os campos e assim os dogmas quase-doces. até que, de tanta rouxidão, a primavera findo. conseguimos nos livrar da catequese. e de nós.

a explosão primaveril, o sabor de fruta do pé, as pétalas nos cabelos. não.

eu era cinza daquele inverno que me carcomia os ossos e ele era de um desprendimento tão profundo que tirou o seu casaco a me vestir sem me saber, que a todo invernado é assim. eu tinha os dedos negros das fortes tragadas, os lábios queimados, e tremia o desejo de nunca findar aquela eternidade onde encontrava alguma beleza no mundo. em mim. revirei umas sacolas de lixo atrás de uns sachês de mostarda. ele me lambia os dedos e passou um lenço pelo meu rosto e jogou água em minha boca. não dizemos palavras e quando amanheceu me deixei com um copo de café com amoras, num abrigo de inverno.

e as cinzas voam.

era oriente, que pulava recitando hai cais com aquele sorriso que comoveria até os carcereiros de mao e juntos, dalí e tsé tungo fariam os mais belos poemas. que a orgia de cores em meu corpo de ipê roxo eram os sonhos de kurosawa que se misturavam à nossa vontade de ser onírico-materialistas, isso é que devia ser. mas era guerra e desaparecemos.

porque eu gosto mesmo do calor é que era um verão tão quente quanto as areias da praia que me sabe. eu estudava pra o mestrado e nem sei onde estava que sempre fui péssima em geografia e em decidir onde estar nos próximos passos. e eu iria passar em todos testes mesmo sabendo que essa não era pra mim, que na real eu devia pegar uma mochila e sair a registrar os calores das praias e rios. o verão nos olhos das montanhas. e ele me via e me dizia essas coisas que sempre soube. mas era tanto o mormaço que meu cérebro fritava em marxismos e tamanha pilha me punha sem contudo enxergar perspectivas, que histérica joguei a pilha de livros em seus pés que quem sabe o que quero e o que devo sou eu e você é um intrometido machista e tem essa vidinha burguesa e me também entre suas acumulanças.

e eu nunca fui pra academia. e como nunca também tivesse conhecido esse homem, juntei meia dúzia de trapos, uns rascunhos de críticas prolixas, meu toco de lápis e sai sinfonina a procurá-lo em canções, concretismos e estações.

e eu o via.

gay em são francisco, negro na áfrica do sul, asiático na europa, hispânico em san hisidoro, anarquista na espanha, palestino em israel, indígena nas ruas de sán cristóbal, roqueiro nas cidades universitárias, judeu na alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pós-guerra fria, pacifista na bósnia, artista sem galeria e sem portfólio, dona de casa num sábado a tarde, jornalista nas páginas internas de jornais, mulher no metrô depois das 22h, camponês sem-terra, e editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros ou leitores, zapatista no sudeste do méxico, sobretudo, personagem dos meus olhos, telas policrômicas onde nos vimos tantas únicas vezes.

NÃO. NUNCA ACORDAR ASSIM
Não. Nunca acordar assim
Ausente de afetos
Feito feto
No escuro frio
De um ventre inútil.
Nunca. Não adormecer assim
Pleno de ausências
Que se desenham
Tatuagens cítricas
Na pele
Acordando gritos
De personagens mudos.

É assim o amor.
Bicho tinhoso
De muitas cardos
e de muitas
Cordas
Garras que se cravam no corpo
E arranham, sugam,e
Às vezes sangram
Sentimentos curvos
Turvos nos olhares.

É assim. Assassino
De si proprio, às vezes,
Outras vezes,
Coros de anjos
E luzes de poentes
Em seus dentes
Cabelos das madrugadas
Mais calientes.

Na plenitude vazia
Do desassossego
O arremedo do sonho:
O pesadelo
De se ser impar.

foi assim meu sonho,
de acordar nua de escravismos,
ausente de verdades e farta de afetos.

eu era malu a sangrar, tatuar, gritar o amor
em suas múltiplas cores, poéticas e cheiros.

ma-grittando

texto de nina rizzi. todas imagsn de renèe magritte.

i-





há homens chovendo
num quadro
e há infinitos quadros
de crianças que chovem
abandonadas em estações.




uns trocados ao acaso;
a recipientalização;
umas tantas e biodiversas
de várias que não mais são
[e flores orientais num diário escolar]



há um cachimbo que é um cachimbo
- ah, a cidade não dorme
e as máquinas não param
e a fumaças no cais
e em mim
e em tudos

ii-





homens beijam mulheres
que chamam suas mulheres
e eles têm as cabeças cobertas
e elas têm vendas nos olhos
que foram vendidos por fissura.



pombas transmissoras de doenças voam
aterrisam voadoras
e as alimentam nuvens
nuvens minhas mãos
: mão esquerda do estado.



uma mulher querendo abortar
o homem invadido em si
invasora mão direita do estado.



olhamo-nos ao espelho
e as carteiras estão vazias
não temos cabeças
e os pássaros de nós
enclausurados em desespero-âmago
: gaiolas que fizeram a chamar de
minhas, meus, tuas, deles, vossas.

iii-



e há consciências
incooptáveis
incorruptíveis
utópicas
que bradam e sonham e distribuem
: esperanças que duram
não mais que um dia;
pronomes revolucionários;
onomatopéias insurgentes;
sujeitos livres
a cantar bailar gritar girar
chover
pelas fumaças
por todos os lados,
estações e cais e tudos
: resistimos
produzimos
existimos
à margem esquerda do estado.



Mar vagabundo


"O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar" (Rilke).



Mar revolto: José Cavaliere



Há um mar em mim.

Um mar de águas revoltas.

Nuvens pesadas circulam passageiras

Areias, em fileiras, atiram-me ao fundo

quase sempre certeiras.


Há um mar em mim

E eu tantas vezes nada entendi:

da cor que me veste olhos d'agua

e do vento que me sopra à maré baixa.


Pois há um mar em mim

E eu não tive sequer escolhas

Não pude dizer (ao mar)

que parasse com esses cantos sombrios

Nem que me deixasse a não-mercê de tais desafios.


Por que esse mar é fora da lei

Não sabe o que é sorte, nem teme solidez

Tudo sente, nada sofre e me move à embriaguês.


Por que esse mar é poço sem fundo

Quanto mais arrasta, mais revira tão doce mundo

Secando-me as águas claras em tons cinza profundos.


Isso tudo porque esse mar é vagabundo...



by Hercília Fernandes



*Mar vagabundo também em o Balaio Porreta.