* Postagem Simplesmente Poesia (13)


A poesia feminina no divã ou o contrário?


tela: Nudez feminina reclinada no divã ( 1825-1826)
autor:
Eugéne Delacroix


* Na surdina *

( Cris de Souza)
In: Trem da lira

O silêncio me habita
Não é meu esse delírio
E nele me burilo

A rever gestos
Que se espaçam
Nesse mundo vadio

O silêncio me habita
Não é meu esse martírio
E nele me exilo

A romper restos
Que se esgarçam
Nesse fundo vazio


* Latente *

( Rita Costa )
In : Alma de Poesia

Quando mergulhei
no silêncio dos gestos
senti que pairava no ar
a essência do poema
E foi pela intenção oculta,
ritmada... dos versos
que, urgentemente, desejei
o cessar das palavras




Tela: Salvador Dali


* Parti *

( Taninha Nascimento )
In: No Rastro da Poesia

Sim, há uma ausência.

E como quem procura a lógica
saio ao encontro
da possível existência de mim.

Sem mais,
parti.


*Pensamentos de raiz *

( Úrsula Avner)
In: A Alma da Poesia


Sou planta de raiz profunda
caule cravado em terra úmida
o que sei de mim
é mera especulação
gotas que caem
no cochicho das folhas
na aridez do chão
na fluidez do vento da incerteza
no salivar da imaginação


* Itinerário do silêncio *

( Graça Pires)
In: Ortografia do Olhar


À espera de um momento de luz
retorno, sem hesitar, ao itinerário
secreto do silêncio e cultivo a solidão
multiplicando as sombras.
Peregrina de outras luas,
resgato a música
que me restou da infância,
como um sobressalto,
ou uma canção de embalar,
ou água fresca a ferir-me a boca,
de tanta sede.


Estraga prazer :
notas de explicação que ninguém pediu:

Caros(as) Leitores(as),

O objetivo da presente postagem, longe de pretender uma análise literária dos textos apresentados, é propiciar uma reflexão sobre a influência das manifestações psíquicas do inconsciente na linguagem poética feminina, à luz da psicanálise e da própria poesia, observando a interlocução entre os textos e as imagens da postagem .

Na piscanálise, entende-se que a linguagem do inconsciente se dá por meio de expressões metafóricas, observadas nos sonhos, chistes, atos falhos, entre outras manifestações psíquicas, que possibilitam a emergência de conteúdo latente. Na criação poética, a linguagem também é metaforizada e transmuta a realidade através das entrelinhas, das figuras ou símbolos linguísticos.

O(a) poeta(isa) deixa vir à tona aspectos de sua subjetividade, permitindo, assim como na psicanálise, que seja expresso, parte do que está oculto, submerso, tal qual o corpo de um iceberg, em que apenas uma pequena parte é vista sobre as águas, enquanto, a maior parte do bloco de gelo está oculto. Dentro de tal analogia, a parte maior é o inconsciente, enquanto a parte menor é a consciência.

Sigmund Freud, pai da psicanálise, entendia a poesia , entre outras formas de expressão artística, como "um domínio intermediário entre a realidade que nos nega o cumprimento de nossos desejos e o mundo da fantasia que procura sua satisfação."

Gaston Bachelard, filósofo, poeta, epistemólogo, tendo se aproximado da fenomenologia e da psicologia , considerava que a imaginação é a própria força criadora do psiquismo que se expressa por meio de um devaneio poético que exige disciplina : "poeta é aquele que fala no âmago".

Apesar das diferenças conceituais entre Bachelard e Freud, talvez se possa afirmar que ambos concebem a poesia como um modo específico de acesso ao inconsciente, ao lugar mais íntimo e misterioso do ser.

Na linguagem poética da notável escritora e poetisa mineira Adélia Prado, por exemplo, podemos contemplar a relação nítida entre a poesia e as questões do psiquismo no viés da psicanálise :

" Tinha vantagens não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus
pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor,
estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo... Como um
pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H
nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado. "


( In: Quero minha mãe - Rio de Janeiro: Record, 2005 )


" Aonde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá antes de mim "
( Sigmund Freud )


Bibliografia:

* FREUD, Sigmund. Obras Completas. Ed. Standart Brasileira, 1974.

* GASPAR, Ana Maria Mendes. " O lugar da psicanálise na obra de Gaston Bachelard. " Lisboa: CFCUL. Tese de Mestrado em História e Filsofia das Ciências, 2008.

*http://www.consciencia.org/

* http://pt.wikipedia.org/

* sugestão de leitura do livro : "Quando nem Freud explica, tente a poesia!", de Ulisses Tavares. Ed. Francis.

Ah, se não fosses casada

tela de Joan Miró, "Perro ladrando a la luna"


Ah, quem me dera não fosses casada
Com esse belicoso aventureiro
Eu enfrentaria íngreme escalada
E - milagre! - me terias inteiro

Dar-te-ia a mais fulgorosa estrela
Clamaria versos para enlevá-la
Fuzilaria os outros só pra tê-la
E sentir o olor que teu lume exala

Jamais em ti eu pisaria atroz
Nem soltaria fogo pelas ventas
Verias um vulcão dentro de nós
De derreter até massas cinzentas

Nova, te encheria com meu ardor
Num resplendor de beleza crescente
Prenhe, minguar-te-ia acolhedor
À míngua, começarias novamente

Quando viesses nua, qual clarão
Amada, não fartaria de olhar
Lua, se te separares do dragão
São Jorge deixa a gente namorar?
.

* Pré e pós conceito *

obra: mulheres negras de barro
escultor: Irineu Ribeiro

Olha a negra
descendo o morro
cabelo sarará desgrenhado
casa de joão-garrancho
pixaim ninho de guacho
negra fulô
negra do andor
negra do despacho

rebola a negra
barriga de fora
cheiro de alho e cebola
lá vai a negrinha
e mais ninguém
mexe as ancas
vai e vem

negra do beco
negra do morro
Lourdes, Sebastiana
Joana, Maria do Socorro
apanha do marido
apanha da vida
cozinheira lavadeira
faxineira parideira
vida sem eira nem beira

Lá vai a negra feinha
arrasta as chinelas
a caminho da feira

só anda sozinha
mastiga casca de canela
a negrinha brejeira

sofre a negra
mas não se entrega
no esmeril da vida se esfrega
esquece que não é de ferro
é de barro


Úrsula Avner