APRESENTAÇÃO: "Elas cantam amor"



NUNCA eu tivesse querido
dizer palavra tão louca:
bateu-me o vento na boca,
e depois no teu ouvido.

Levou somente a palavra
deixou ficar o sentido...

(Cecília Meireles. Canção, in: Viagem: 1939)


Uma das qualidades da poesia feminina é a externalização sincera dos sentimentos do eu-emotivo.

Com maior ou menor intensidade, é observável que o “amor” é um dos temas que perpassa a lírica feminina. Seja o amor sensual e/ou metafísico, a poesia realizada por mulheres se reveste de múltiplos sentidos e expressa a ânsia de completude, a saudade, a inquietação física e as dores do vivido e/ou não-vivido.

Em razão das comemorações alusivas ao dia dos namorados, o “Maria Clara: simplesmente poesia” traz uma seleta de textos intitulada: “Elas cantam amor”, dividida em quatro partes que expressam as singularidades do universo poético feminino no tocante à externalização da afetividade, às idéias e às sensações que lhes são pertinentes.

Na primeira parte da postagem, destacam-se poemas onde o eu-emotivo proclama o desejo de realização e/ou busca por uma compreensão aos sentimentos de amor. Comportando textos das poetisas Adrianna Coelho, Solange Maia, Mirse Souza e Úrsula Avner.

Na segunda parte, os poemas tematizam o amor sensual, aquele que, como diria o poeta, “arde sem se ver”... Nesse bloco destacam-se textos da poetisa portuguesa Mariab e das brasileiras Mercedes Lorenzo e Beatriz.

Na terceira parte, a postagem comporta poemas que tratam da saudade, do retorno às amáveis lembranças e aos motivos que levam o eu-lírico ao canto amoroso, destacando-se poemas das nordestinas Lou Vilela e Hercília Fernandes, e da portuguesa Graça Pires.

Na quarta parte da matéria, a postagem tematiza as inquietações, turbulências e adversidades pertinentes às relações afetivas, onde se apresentam poemas das poetisas Adriana Godoy, Nina Rizzi, Líria Porto e Adriana.

A postagem comporta, ao todo, 14 textos poéticos. Sintam-se convidados a uma viagem onírica pelos labirintos do amor através das impressões digitais das belas vozes femininas in destaque.


Amáveis Saudações,

Maria Clara...



Elas cantam amor (1)




Incessante sede

Adrianna Coelho



desde que sinto esse aperto

o ar rarefeito

essa sede e essa fome

incessantes


(e o inalcançável tão perto)


meus poemas não são

de amor:


são de tântalo



In: Metamorfraseando



Fenda

Solange Maia



Há um açude em meu peito.

E um dique na minha cabeça.


Em meu peito tem um tanto de amor retido, acumulado, um amor que quer ser dado, ser entregue, ser consumido. Que é terreno fértil, úmido, que é um guardado para ser vivido com alguém muito especial, que é feito água vertendo sem parar, querendo inundar, querendo preencher...


Em minha cabeça há uma determinação lógica que quer manter um pouco de terra seca, que luta para controlar esse tanto de amor fluente, que armazena com a intenção de não faltar, que resiste bravamente às enchentes, e que é a antítese da minha vontade, mas que tantas vezes me permite não afundar.


Mas de uns dias pra cá descobri uma fenda.

E ela tem escorrido mais do que devia...


In: Eucaliptos na Janela




O amor que almejo

Mirse Souza


Se o amor assim me chegasse,

Quisera fosse intenso...

Rasgando almas, denso

Daquele amor que escandaliza

Como o de Abelardo e Heloísa.


In: Meu lampejo




Crisântemos vermelhos

Úrsula Avner



Aproximou-se de mim com serenidade

como um sopro de brisa primaveril

tocou minha face sem fazer alarde

acendeu em meu peito o pavio

tateou suas mãos orvalhadas

pelo meu corpo já cambaleante

sussurrou palavras de amor adornadas

com respiração ofegante

Chamou-me amada de minh´alma

envolveu-me em seus braços com surpreendente calma

lançou-me o olhar do desejo em estilhaços

refletido em espelhos do brilho aveludado

dos crisântemos vermelhos


In: Sempre poesia



Elas cantam amor (2)


Rescaldo (1)

Mariab



deixa que te diga

já viajei pela chama da vela


lambeu-me a pele

o corpo abrasado

em cores amarelas azuis


em ondas escaldantes de hidrogénio e vapor de água

me espraiei eufórica

no calor final do carbono queimado

gritei mil vezes


da viagem sobrou a alma em brasa

rescaldo fumegante da combustão do corpo


In: Espessa humanidade




Assim

Mercedes Lorenzo



perambulando pelo cio que não me deve

te quero passos

ainda que pese meu antegozo sobre teu dorso

te quero leve

pra que o vento aspire a cena e nos carregue

te quero zonzo

e o prisma dessa miragem me faça arco

te quero índio

fundo - pra que indelével teu gosto fique

gostando em mim


In: Cosmunicando




Duo Infinito

Beatriz



Mal me viu

Eu te amei


Cheguei

Gostou


Chamei

Ficou


Gritei

Calou


Crispei

Rosnou, em voz baixa


Tua boca, teus dedos

Tua pele, tuas pernas

Todo teu corpo

Deixou o meu

Acabou


In: Compulsão diária



Elas cantam amor (3)



Vazio

Lou Vilela



A mesa posta o choro da vela

um cheiro almiscarado

dois corpos ladeados

lençóis em desalinho:


lembranças que destoam daquele lugar vazio.


Saudades da paixão que gotejava sobre o telhado

escorria pela bica fertilizava a terra.


Mãos tombam sobre a mesa, impotentes.

Abraçam-se os dedos:


- “Seja feita a Sua vontade”...


In: Nudez Poética



Da tua ausência

Graça Pires



Voltarei sempre às paisagens da tua sombra

enfeitada de madressilvas.

Gravarei o teu nome em todas as árvores,

sem marginalizar as razões da tua ausência.

Cantarei palavras sem espessura,

como moinhos de vento,

ou o frágil sabor da chuva.

Dançarei contigo na periferia da manhã

e direi onde começa e acaba

o secreto destino do silêncio.


In: Ortografia do Olhar



Amor maior

Hercília Fernandes



Cantarei a esse amor

(sempre, quando)

Cantarei a ele, amor maior,

conspiração minha e desengano.


Cantarei nas tardes serenas

e nas águas turvas também.

Cantarei com extrema doçura

a esse amor que só vai e vem.


Cantarei se preciso for

para ninar a dor e o silêncio.

Não sufocar tamanho amor

nem a tarde e o firmamento.


Cantarei sem que mereças

ou, mesmo, que me peças.

Cantarei para que não esqueças

a lua, a chama e a promessa.


Mas calarei quando preciso

(sem choro, sem vela)

Fragmentos do meu riso

fina-flor-estampa na aquarela.


In: HF diante do espelho



Elas cantam amor (4)



O ar frio que entrava pela janela

Adriana Godoy



mais de uma vez ele me disse

que havia solução

que nem tudo estava perdido


mais de uma vez apagou a luz ao sair

me deixou na escuridão do quarto

e pôs Milles Davis para tocar


mais de uma vez me cobriu com o edredon

colocou a mão na minha testa

para ver se eu estava com febre


mais de uma vez me beijou com olhos selvagens

me chamou de vadia de louca de perdida

e deliramos juntos no deserto de nossa cama


mais de uma vez ele chorou

olhando as estrelas


mais de uma vez jurei mudar

era só uma questão de tempo


mas depois de mil e uma noites

depois de apagar a luz do quarto

ele se foi


eu fiquei


e ficou a noite a música

e o ar frio que entrava pela janela



In: Voz




História de pescadores

Nina Rizzi



i-

meu amor me pegou na rede

meu amor pescador

encheu de encher meu ser

palhaços

anêmonas


cheinha de sardinhas era o meu bem a-mar


ii-

meu amor me jogou em alto-mar

me chamava de pescadora

- de ficções


repletamos nossa rede

pintamos palhaças

tudos nosso ser


iii-

meu amor pescava

tudos palhaçarinhas

arrai-ais sardinhas

me enfeitava de outros cheiros


tinha medo do cio de ca-nina


iv-

mandei meu amor pescar

me dava sardinhas

oh, baby, go back

me queria outra

(de fartas carnes

fechada rede)


oh, baby, go back

que de bichos só como

(s)hu(s)-manos


v-

meu amor morreu no mar

não foi afogamento

esbatelamento de agua-rias

bebedeiras


morreu assim

pra mim


In: ellenismos




Fiapo

Líria Porto




um amor cheio de nós

esgarçou-se por inteiro

e depois se emaranhou

desfiou embaraçado

era amor só por um fio

desconfio amo(r)finado

amor sem trilho

sem brilho

sem nós

a sós

d

e

s

a

m

o

r



In: tanto mar



Suicídio

Adriana




Não hei de morrer de tristeza.

Morrerei de amor

que é morte trágica, mas bela.

Reflexo de minha vida tarja preta.

Adeus



In: Adriana Karnal