Poesia Infantil: José Paulo Paes


Convite

Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.


Só que
bola, papagaio, pião
de tanto brincar
se gastam.


As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.


Como a água do rio
que é água sempre nova.

Como cada dia
que é sempre um novo dia.

Vamos brincar de poesia?


(In: http://www.revista.agulha.nom.br/jpaulo1.html#convite)






Passarinho fofoqueiro

Um passarinho me contou
que a ostra é muito fechada,
que a cobra é muito enrolada,
que a arara é uma cabeça oca,
e que o leão marinho e a foca...
xô, passarinho! chega de fofoca!


(In: http://www.revista.agulha.nom.br/jpaulo1.html#passarinho)






Acidente

Atirei um pau no gato,
mas o gato
não morreu,
porque o pau pegou no rato
que eu tentei salvar do gato
e o rato

(que chato!)

foi quem morreu.



(In: http://www.revista.agulha.nom.br/jpaulo1.html#acidente)





Nota biográfica (Revista Agulha)



José Paulo Paes nasceu em Taquaritinga-SP, em 1926. Estudou química industrial em Curitiba, onde iniciou sua atividade literária colaborando na Revista Joaquim, dirigida por Dalton Trevisan. De volta a São Paulo trabalhou em um laboratório farmacêutico e numa editora. Desde 1948 escreve, com regularidade, para jornais e periódicos literários. Toda sua obra poética foi reunida, em 1986, sob o título Um por todos. No terreno da tradução verteu do inglês, do francês, do italiano, do espanhol, do alemão e do grego moderno mais de uma centena de livros. Em 1987 dirigiu uma oficina de tradução de poesia na UNICAMP. Faleceu no dia 09.10.1998. Dados extraídos da Revista Agulha. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/jpaulo.html#bio. Acesso: 20/06/08.



Para saber mais sobre o Autor e Poesia Infantil, visite:



Entrevista de José Paulo Paes a Rodrigo de Souza Leão (Junho de 1998). Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/r2souza08c.html


O jogo verbal em José Paulo Paes: marca de um estilo peculiar. (Maria Tereza Gonçalves Pereira/UFRJ). Disponível em: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno10-12.html


A poesia infantil no Brasil. (Luís Camargo: 2000). Disponível em: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/artigos/art021.htm.


A Literatura infantil na atualidade: o paradigma lúdico. (Hercília Fernandes/UFRN: 2008). Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/06/literatura-infantil-atravs-dos-tempos.html


Hercília Fernandes "fala" em O lugar que importa


Em 10/05/08, a poetisa, educadora e pesquisadora Hercília Fernandes esteve no blog do escritor e psicanalista Marcelo Novaes (O lugar que importa) para um “bate-papo literário”.

Na ocasião, a escritora das “imensidões íntimas” fora inquirida a “falar” ao autor de “O lugar que importa” suas concepções sobre arte literária; das águas e dos espelhos em sua poesia; e o lugar da escrita feminina na atualidade.

Sem nenhuma dúvida, esse encontro é um “precioso achado” para os que, como eu, buscam uma compreensão para o fenômeno criador e apreciam uma boa literatura. Por essa razão, o blog “Maria Clara: Simplesmente Poesia” tem a honra de divulgar o bate-papo nesta postagem.




FH/HF diante de outro espelho. Fala, Hercília!


Marcelo Novaes (O lugar que importa):

Aqui, nesta postagem, abro espaço para a colocação de idéias e propósitos artístico-literários de HF, Hercília Fernandes. Hercília tem um blog, bastante visitado por mim e alguns dos leitores deste "O Lugar que Importa", http://fernandeshercilia.blogspot.com/, no qual assim se apresenta:


HF OU HERCÍLIA FERNANDES

"Sou um pouco de tudo: dispersão e pragmatismo se misturam e 'deformam' minha personalidade. Sou como um verso mudo, entrecruzado nas entrelinhas de tantos discursos e vãs verdades. Por fim, sou o que sou e isso é tudo! O resto é controverso nas linhas da transitoriedade". Mestranda em Educação (PPGED-UFRN); Pedagoga; Especialista em Ed. Infantil; Professora, poeta, compositora, escritora com dois livros já publicados e participações em antologia.


Vamos "ouvir", com atenção, algumas de suas concepções e preferências sobre Arte e Literatura, e algumas "nuances" de seu trabalho (me desculpe o galicismo, Hercília, mas acho "nuanças" uma palavra improvável de ser usada, pela popularização da original...).

Segue-se o meu pequeno bate-papo com a escritora-educadora, Hercília Fernandes.


Entrevista:


1) O que é Literatura para você, Hercília,e para que serve a "dita cuja"?! Qual o lugar da Literatura em meio às demais Artes?!


H.F.: Literatura é uma linguagem desprendida da lógica, do senso comum e caminha à arbitrariedade, cuja materialidade e fim repousam em uma única entidade: a palavra. Essa é uma das possíveis definições apresentada pela crítica Nelly Novaes Coelho (1980) e outros analistas, como Massaud Moisés, na qual acredito. A palavra é o universo da literatura e a ferramenta do escritor, assim como é o instrumento que possibilita ressonâncias e repercussões de “imagens” no ser do leitor, dentro da perspectiva bachelardiana de arte literária, da qual compartilho. Todavia, “quê palavra”? “Qualquer palavra pode ganhar o status quo de ‘ser’ literária”? Aí, entramos no problema do gosto e do que as pessoas, em determinada época e contexto sócio-histórico, nomeiam como sendo literário. Particularmente, a palavra a que me refiro é a “palavra transfigurada”, aquela que consegue se dissociar das convenções da língua e se libertar do sentido usual, originando uma nova idéia, uma outra maneira, mesmo que com “ferramentas gastas”... Ou seja, a palavra literária caminha sempre para a reinvenção, embora vestindo “velhos panos” (signos). Quando a leitura surpreende o leitor com essa nova idéia, cor, sentimento, construção... essa palavra é literatura! Então, a partir dela o leitor ressignifica a sua existência, construindo outros horizontes, portos, navios... O interessante da linguagem literária – quando não é “bula de remédio”, evidentemente – é justamente essa capacidade de reinvenção, de transportar sentidos entre autor – texto - leitor. Isso, em si, já justifica a sua existência. Aquilo que apresentamos maior sensibilidade opera melhores modificações em nosso ser, mas quando o texto minimiza as possibilidades de leitura, nem sempre há uma verdadeira transformação porque a escrita está presa a mecanismos – valores, conceitos, regras - que um leitor experiente facilmente identifica, nem sempre compartilha e nem sempre são essenciais à sua vida. A literatura, como linguagem própria, possui sempre autonomia, porém se relaciona, continuamente, a outras formas de expressão. Lembremos o caso da poesia, a linguagem poética utiliza elementos da música e das artes visuais. Há textos que são mais canções do que propriamente poemas, outros são tão paisagísticos que compõem uma verdadeira aquarela no ser do leitor. E, ainda, temos que lembrar a parceria da literatura com a dramaturgia televisiva, com a imagem fonográfica, com o teatro e a tragédia... Isso significa que onde houver “palavra transfigurada”, isto é, multiplicidade de sentidos, ali, há a presença da literatura.


2) Sabemos que pode haver "alta cultura" com degeneração ética. A República de Weimar não coibiu o Nazismo, e até o endossou, substancialmente. Pode a Literatura gerar "valores humanos"? Quando e como?


H.F.: Sim. A literatura tanto pode elevar a condição do homem ou remetê-lo para o retrocesso da sua natureza, seja no plano simbólico das relações propriamente subjetivas e/ou das representações coletivas. Isso porque os escritores são também sujeitos sociais; integram um grupo e/ou classe em um dado tempo histórico, onde compartilham com certa visão política, artística, cultural... - deixemos de lado essa visão simplista do artista como ser metafísico dissociado de uma realidade histórica! -Como ser social, o artista atribui à sua composição valores, saberes, ideologias, intencionalidades e, até mesmo, preconceitos e senso comum. Jacques Le Goff diz que o escritor é “herdeiro” e “tradutor” de uma cultura, isso significa que a obra literária contém um caráter “memorialístico”, já que comporta aspirações, necessidades, interesses e uma soma de idéias pertinente a um grupo amplo e/ou a uma elite cultural fechada. Vejamos o caso do Romantismo Alemão que, antes de mais nada, sintetiza um “movimento civilizatório”; Goethe, por exemplo, há quem o identifique como precursor das idéias de modernidade, cuja obra prima - Fausto – sintoniza o prenúncio de uma nova civilização, do avanço do capitalismo e de formação de uma cultura ajustada às idéias de saber, força e poder. O Fausto simboliza a ruptura do homem com o arcaísmo e o nascimento da crença absoluta no Novo, essa é a leitura que Marshall Berman, brilhantemente, realiza em um dos capítulos do livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. No Brasil, podemos citar vários exemplos de autores que se comprometeram em disseminar uma cultura desenvolvimentista do homem atrelada à construção de uma nova mentalidade para fomentar o nacionalismo. Esses escritores defendiam, inclusive, a virtude de algumas raças e/ou de algumas miscigenações para produzir um homem mais “são” e moralmente “melhor”. Aí, vemos, claramente, o mito da civilização operando sob o processo criador. (Ver leituras acerca do discurso médico incorporado à produção literária brasileira. Cf. Micael Herschmann: 1993; 1996). Ao lermos tais autores, - dentre eles Olavo Bilac, Afonso Celso, Euclides da Cunha... – é possível “enxergar” o olhar “etnocêntrico” guiando o processo de criação; onde a noção de “verdade” é produto dos que “pensam” a realidade histórica e justificam-na, em seus livros, por meio do discurso cientificista, alegando-se “conhecedores” espirituais e materiais da vida humana. Nesse caso, a literatura tende a modelar o espírito do leitor de modo degenerativo, já que não perpassa, em tais obras, o princípio da liberdade artística, liberdade que deve ser concomitante também às ações do leitor. A literatura atua unicamente como reflexo imediato de uma realidade que a aprisiona e não como resultado de uma relação dialética que norteia o cotidiano e repercute sob o processo criador. Essa é uma das questões que impulsionou a minha dissertação de Mestrado (UFRN), a partir da análise de obras de Cecília Meireles dentro do gênero infantil. Na pesquisa, busco compreender como a literatura infantil brasileira, sobretudo a produzida pela poetisa e educadora Cecília Meireles, nos anos de 1920 a 1940, fora representativa de certas ideologias, invertendo a realidade histórica a partir de uma visão idealista, amparada e legitimada a partir dos saberes oriundos da ciência. O discurso desses intelectuais escritores, ou “operários-artistas” como categoriza Herschmann, justifica-se pela importação de alguns mitos europeus, dentre eles: o de um Novo Homem, Nova Civilização e Nova Ordem Social. Acredito que a literatura contribui para evolução do homem, seja no plano espiritual ou material, quando o escritor confere diferentes ângulos de análise em sua obra, mesmo que, a priori, não compartilhe com alguns vértices. Pois, desse modo, o leitor pode confrontar valores e optar por caminhos que lhe parecerão mais “ajustados” ao seu entendimento e, sobretudo, à sua vida. Quando a literatura é representativa de interesses dominadores e ideologias, direcionando autoritariamente o olhar do leitor, ela pode até ganhar prêmios e atingir o status quo de ser literária pela crítica; porém, não deixa de ser prescritiva; portanto, “bula de remédio”!...


3) A literatura, como toda produção simbólica, provém do inconsciente em larga medida. Aliás, isso é um dos vetores de sua genuinidade/legitimidade . Alguns estão mais conscientes do que outros desse fato. E, por isso mesmo, fazem uma "parceria" entre consciente e inconsciente em seus trabalhos. Outros tentam fazer uma arte "mais estritamente consciente", e se comportam mais como "artífices" do que propriamente como "artistas". Você se dá conta do inconsciente em teu trabalho em que medida? Nos temas, cadências, imagens, em tudo isso e mais alguma coisa...?! Você se surpreende muito com o que escreve, ou com o como (o modo como) acaba escrevendo?


H.F.: Não acredito nessa visão de uma “musa”, “deus” e/ou “ninfa” operando no instante criador. Como já anunciei, essa concepção me soa ingênua e estritamente simplista. Acredito que um texto literário resulta da boa combinação das funções do “real e irreal” que acaba originando uma nova entidade, uma construção paralela e análoga ao cotidiano, esse conceito é o que defende - salva as diferenças estruturais entre os filósofos - Huizinga em Homo ludens e Bachelard em A poética do espaço e em A poética do devaneio. Agora, referindo-me a minha escrita, diria que as imagens, sons, sinestesias, associações são processos que me ocorrem naturalmente; porém, a maneira como irei catalisar essas forças é que envolve o processo que você chama de “consciência”. Resumindo, a imagem que o verbo suscita flui de modo extra-sensorial, porém para construção do texto necessito de todas as possibilidades da razão, do conhecimento técnico e saberes instituídos. Um bom texto, mediante a minha compreensão, provém do acordo harmonioso entre linguagem, valores e conteúdos. Isso significa que o artista, é antes de tudo, um “artesão”, alguém que sabe escolher bem a “cola” e as “figurinhas” para colorir e também deixar se descolar de sua aquarela. Não basta a percepção da idéia, é preciso domínios específicos. Uma das coisas que aprendi e vejo que tem surtido um bom efeito às minhas produções é sempre desconfiar. Desconfio do que escrevo, do que leio e também dos comentários dos leitores, sobretudo quando elogiam... (Risos). Sintetizando, as métricas que comumente uso, as associações simbólicas, os tons e, às vezes, os desequilíbrios semânticos são resultados dessa combinação - real / irreal -; nem sempre sei “o que” pretendo dizer, mas sempre me volto à mente para saber “como” dizer...


4) Você parece apreciar que não se distinga tanto uma "literatura de gênero" (masculina ou feminina). Talvez você advogue um "poeta hermafrodita" no seu imaginário. Afinal, existe uma literatura de gênero? Em que diferem (ou não) as duas escritas, masculina/feminina na tua vivência como escritora / crítica?


H.F.: Se eu dissesse que não há diferença entre a literatura feminina e a produção masculina seria desconsiderar todo um viés de enclausuramentos e submissões a que as mulheres tiveram e têm, diariamente, que transpor. A história da mulher escritora coincide com o seu processo de emancipação, de lutas e conquistas por direitos básicos como se vestir, votar, trabalhar no espaço extra-doméstico; enfim, de sonhar, fantasiar, expressar opiniões, conceitos, sentimentos. No caso brasileiro, até por volta dos anos de 1930, a mulher não podia externalizar, pelo menos escancaradamente, as suas vontades e idéias. As que lutavam contra este estado de coisas eram rotuladas de subversivas e, em piores casos, prostitutas; vejamos o caso das cantoras do rádio, de Anita Mafaltti, Tarsila do Amaral e Pagu no movimento modernista e Cecília Meireles na imprensa jornalística que sofrera várias perseguições do Estado Novo e da mentalidade patriarcal então dominante nos anos de 1930-1940. No meu caso, o que defendo é a minha “licença poética”, parafraseando Adélia Prado. Mas, sou consciente que aquilo que expresso é pertinente a um eu-lírico feminino, muito embora de um “eu” que busca “resistir” opressões, pressões e distorções de qualquer ordem. Creio fidedignamente que a linguagem literária pode - e deve - transpor valores, consensos e “bons sensos”... Quando escrevo, penso assim: - “Não estou aqui para aplaudir, mas para irritar”!... Isso implica o conteúdo “didático” das coisas que tento veicular. Não perco tempo imaginando como as pessoas irão construir a Hercília Fernandes “mulher”, “esposa”, “mãe”, “profissional da educação”, etc. Porque acredito que enquanto poeta – ou, se preferir, poetisa – sou alguém que lida com fatos humanos, entretanto reinventados pela lente visionária da poesia. Ilustrando, recentemente postei no blog “HF diante do espelho” um texto que soa como provocação, é um monólogo realizado por uma voz feminina, onde a personagem faz uso de afirmações e falseamentos para ilustrar algumas situações do seu universo afetivo-conceitual. O título da escrita já é, por si só, intrigante: Sobre-viventes (http://fernandeshercilia.blogspot.com/2008/03/sobre-viventes.html). Alguém que ler o texto, desatentamente, poderá interpretar que estou trabalhando com uma imagem invertida da mulher; quando, na verdade, o propósito é buscar um efeito contrário. No monólogo, a personagem dialoga com alguns mitos que foram sendo construídos pela filosofia, religião e, sobretudo, pelas relações sócio-humanas. O objetivo é um só: levar o leitor para a reflexão das entrelinhas existentes no cotidiano da mulher: seus silêncios, mutilações, coerções... “Mas, porque estou realizando esse percurso argumentativo”?! É, justamente, porque creio que o que difere a escrita de homens da produção feita por mulheres é o fato de os homens não terem sido historicamente amordaçados, não tiveram que pedir: - “com licença, deixe-me falar”!... não tiveram que vestir “anáguas” e mais anáguas para poderem expressar um eu-individual; já a minha personagem para dizer as coisas que lhe atormentavam o espírito, tivera que falseá-las, isto é, negá-las! É contra este estado de coisas que tento lutar, se gosto da denominação de “poeta”, é para deixar claro que, como artista, sou uma “invenção” de um eu-lírico, ou melhor, de H.F. Isso implica que não aceito ter que passar a vida inteira “ecoando” os ventos de Narciso como Eco, na mitologia grega, fora condenada a proferir. Sou alguém que busca unicamente: dizer!


5) Muita gente (leitoras, sobretudo) não digere tão bem uma "literatura de cinzas", de perda, de linguagem dura. Incluo, aqui, "a literatura do escarro", de Augusto dos Anjos. Há os grandes escritores da linguagem dura (Cesar Vallejo, William Faulkner, William Burroughs, John Steinbeck, Augusto dos Anjos, Hilda Hilst...), assim como há uma "literatura da loucura" (Sylvia Plath, Anne Sexton, Antonin Artaud, Strindberg, Hilda Hilst, de novo...). Como você vê as cinzas e a loucura na literatura?


H.F.: Eu costumo chamá-la de literatura trágica. “Que literatura é essa?”. É aquela que leva o leitor para o porão, para o submundo, para aquilo que está no inconsciente humano, seja individual ou coletivo. Essa literatura da tragédia não é, como muitos supõem, contrária à vida ou pessimista; é, acima de tudo, catártica porque produz substâncias que renovam o interior de quem a constrói e/ou de quem a aprecia. Mas, é importante traçamos pontos divergentes. O cinza, na literatura, pode aparecer também associado às coisas do sótão, ligado ao ar que se apresenta, portanto, menos denso e evoca o desejo de liberdade e plenitude do sujeito; não mais associado ao porão onde circulam os “ratos”, os fenômenos do subterrâneo e as obscuridades da mente. Particularmente, eu gosto de textos que me fazem refletir, que me apontam para o sentido da vida e para as contradições existentes nas relações humanas. Se os “gatos” são “pretos, pardos ou amarelos”... pouco me importa. O importante mesmo é identificarmos os ratos existentes no interior humano. Para mim, a tragédia é uma das literaturas mais belas, porque há muita “sinceridade” na exposição do artista de sua dor, de seu sofrimento, de seu desvario... Penso que o que acontece é que fomos e continuamos sendo educados para não enfrentar dores, perdas, rupturas... O mito da felicidade, a eterna busca humana pelo “bem perdido” ainda vigora em nossos dias. E, esse tipo de literatura, voltando-me inclusive aos autores que você menciona, contribui para estabelecer tal confronto, desfazer dogmatismos e evitar automatizações. Dois dos livros de Cecília Meireles que mais aprecio são “Viagem” e “O estudante empírico”, porque nessas obras quase se pode tocar a sua dor, a poetisa expõe verdadeiramente o seu eu-lírico e isso emerge sensações no interior do leitor, modificando-lhe os sentidos, os hábitos, os conceitos, enfim, as “pequeninices” da alma. Para mim, é importante enxergarmos a beleza existente na dor, não numa perspectiva equivalente à mortificação do ser ou do desespero; mas, de sê-la comum à vida humana e ao processo de evolução. A maioria dos grandes filósofos atesta para essa realidade, do aprendizado humano pela dor, pela transcendência do espírito e da matéria; enfim, a dor permeia o nascimento, o crescimento e a morte do homem: - “porque, então, nela, não enxergamos nenhuma beleza”?!


6) Defina sua própria literatura, e fale do papel do mar, das águas e dos espelhos nela. E, formalmente falando, o que achas nos teus bordões imperativos ("Vela!", "Reza!", "Cala-te!", "Deitando-me! - está em Alquimia, este último apelo...), das reticências e dos hífens em tua escrita? (o "trait d'union", o traço de união, como chamado pelos franceses, nome preferencial, inclusive, usado por alguns escritores argentinos). Quais suas influências mais diretas, localizáveis?


H.F.: Não sei se seria capaz de estabelecer uma definição clara para as minhas escritas. Penso que aquilo que me sensibiliza, que me faz “chover”, materializo em linguagem; valendo-me, evidentemente, de releituras, teorias, conceitos, figuras de linguagem, etc. Se o que escrevo é literatura, ou não, isso cabe ao leitor julgar. A água, para mim, sintetiza autoconhecimento, revelação e, também, metamorfose - lembremos a lenda de Narciso. Por isso, a água é um dos elementos centrais da poesia lírica, já que se trata de uma produção individual, subjetiva e, sumariamente, introspectiva. Entretanto, não tomemos a produção do eu-lírico como produto direto de um narcisismo primário, onde a idéia de fuga e evasão temporal permeia o instante criador; mas, de mergulho interior do ser emotivo que busca, por meio de imagens poéticas, reencontrar a sua “infância duradoura, móvel e permanente”, para que todas as coisas possam aparecer duplicadas, refletidas; essa é a perspectiva bachelardiana do fenômeno criador na poesia, a qual Bachelard nomeia de “narcisismo cósmico”. Mediante essas considerações, penso que já poderia aventurar uma conceitualização. Creio que o que escrevo se encaixa na categoria de “Lírica”, por isso é uma produção com fecho reflexivo, filosófico, sentimental, existencial e, também, trágico. Muitos dos bordões que utilizo servem para acentuar tais qualidades, não se trata, pois, de uma literatura egocêntrica, focada especificamente no universo interior da H.F.; mas, de uma escrita que se vincula à relação “eu / tu”. Ou seja, o “outro” habita o meu imaginário poético, faz parte desse processo de interiorização e/ou intersubjetivação. Por isso, sempre evoco a sua presença através de expressões que possam localizá-lo dentro da trama. Em Alquimia (http://fernandeshercilia.blogspot.com/2007/12/alquimia.html), além de evocar a presença do outro, a construção textual busca dar outro sentido ao verbo “dar”, que, referindo-se à segunda pessoa do singular (tu), acaba transfigurando o significado para o verbo “deitar”. Outros recursos, como o uso do hífen, são manuseados para oferecer ambivalência aos termos e abrir possibilidades de leituras às entrelinhas do texto. Em Sobre-viventes e Normal-mente (http://fernandeshercilia.blogspot.com/2007/10/normal-mente.html), o leitor poderá observar tais considerações. Sintetizando, faço uso de hífens, reticências, separação de sílabas, etc.; para favorecer a ressignificação textual e, também, para causar um efeito de “can-ti-le-na”, de conversa em “voz alta”. Tais recursos são encontrados na Tradição Oral, sobretudo na prosa-poética e verso em prosa da Literatura de Cordel, a que sempre apreciei. Outras influências localizáveis em meus textos se devem muito as múltiplas leituras advindas não tão somente da literatura, mas também da psicologia, da filosofia, da análise literária, e, até mesmo, da pedagogia. Sempre apreciei uma boa leitura, produto de bons autores e gêneros variados; porém se eu tivesse que escolher exclusivamente um autor, não teria nenhuma insegurança em citar “Machado de Assis”, o grande “alienista” da literatura brasileira. Muitos de meus textos fazem interpelações e produzem diálogos com a obra machadiana. Em meu segundo livro (Agá-Efe: entre ruínas & quimeras: 2006), há vários textos onde dialogo com fragmentos de O Alienista, a maioria retirada apenas da lembrança ardente existente na memória.


7) Quais escolas literárias você aprecia mais, Hercília? E quais suas reservas a estilo ou escola? Existe alguma com relação à qual encontra menos facilidade de identificação, apreciação, ou até mesmo pela qual sente "antipatia"?


H.F.: Aprecio a maioria das escolas literárias levando em conta os gêneros. A prosa no Realismo e no Naturalismo é algo que merece ser levado em conta (ver a obra de Machado de Assis e Aluísio de Azevedo). Os temas na poesia árcade, sobretudo na fase pré-romântica, são fontes inigualáveis de inspiração (Ver Bocage). O exagero trágico-emotivo e a externalização do eu-lírico da segunda geração romântica com Álvares de Azevedo. A musicalidade e a sugestão de signos da poesia simbolista com a voz aveludada de Cruz e Souza. A criatividade e não-formalidade da linguagem modernista com Mário de Andrade, Manuel Bandeira e demais modernistas. Enfim, creio que cada escola tem algo a fomentar de relevante para a formação do leitor. Eu gosto de leitura, até bula de remédio, na falta do que fazer, eu leio...; porém, não sou defensora de nenhum “ismo” e creio que a minha escrita passa um pouco essa idéia. Se me perguntassem em qual escola as minhas “expressões de afeto” se encaixam, eu responderia que minha literatura procura ser “antiescolar”; porém, não no sentido de defesa de corrente filosófica desvinculada da vida real cotidiana, mas de busca da “identidade na diversidade” e não no cumprimento formal de regras literárias, creio eu!... Agora, tratando-se de antipatia, só resta-me dizer que o Barroco e o Parnasianismo são as escolas que talvez eu apresente menos sensibilidade, especialmente pela formalidade lingüística, a rigidez academicista, a objetividade no tratamento dos temas e a preferência aos temas religiosos, no caso do Barroco.


8) O que merece ser relido, sempre, no seu ponto de vista? O que você relê, Hercília? Acha a dramaturgia uma escritura que se sustenta por si mesma, aquém ou para além do palco, antes ou depois dele?! Você gosta de ler dramaturgos "no papel", ou de ver seus trabalhos "na telinha"?


H.F.: Sempre releio os clássicos e cada vez me surpreendo com uma nova leitura: Camões, Bocage, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Aluísio de Azevedo, etc.; embora ultimamente tenha tido pouco tempo para uma leitura desinteressada. Também releio os filósofos do imaginário, livros científicos relativos à análise literária e temas educacionais. Continuo acreditando que nada substitui o prazer da leitura a partir do material impresso; muito embora a televisão, o teatro e o cinema, sem falar na Internet, contribuam para disseminar a obra, expandi-la para um público leitor mais abrangente; já que as imagens, sonorizações e demais efeitos funcionam como instrumentos de repercussão e facilitam ressignificações textuais.


9) Por favor, diga o que acha da literatura veiculada em Jornais literários e Revistas digitais, além dos blogs. Há literatura nos blogs? Quando o meio restringe, em si mesmo (por limites espaciais), a aproximação com "os grandes romances", poderíamos cogitar "no fim da era dos grandes romances"? Quais os romancistas que você aprecia?Cite algum romancista que te chame a atenção hoje em dia.


H.F.: Olha, com a entrada triunfante da Era Virtual, o que eu percebo é que está se formando um movimento literário global em torno de espaços amplos de visitação e interação, sobretudo em sites especializados e nos blogs individuais. Isso, porém, não significa o súbito aparecimento de novos autores no cenário da literatura; sempre se escreveu - e muito! Todavia, os textos ficavam fadados ou ao “sereno” ou às “gavetas”. Em minha opinião, o que fazemos nesses cenários é um intercâmbio cultural, o que é um exercício bastante enriquecedor para os que pretendem lançar-se à escrita. Nesses espaços é possível manipular várias linguagens e conferir uma boa apresentação ao texto, como também há uma resposta imediata dos leitores que apreciam gêneros literários. Entretanto, é preciso chamar a atenção para um fenômeno: o fato de o homem pós-moderno ter necessidade e liberdade de expressão para buscar a plenitude da relação “eu / tu”, não implica necessariamente que essas produções possam ser qualificadas como literárias. Há textos e textos, portanto blogs e blogs!... Isso significa que a facilidade tem gerado também a sensação, e/ou falsa ilusão, de que qualquer pessoa possa vir-a-ser poeta e/ou escritora. Em síntese, qualquer pessoa pode expressar sentimentos, idéias, opiniões...; mas, um texto literário é, antes de tudo, uma obra de arte. E o artista é aquele que, possuidor de uma sensibilidade aguçada e domínios técnicos específicos, “sabe” manusear imagens e signos, recriando elementos da vida. “Quantos são verdadeiramente artistas”? “Quantos não estão buscando atrair atenção às imagens pessoais e não propriamente à produção escrita”? Essas são algumas poucas indagações que se devem refletir, pois não basta apenas “jogar pedras ao luar”, é preciso que essas pedras tenham em si os germens da eternidade, isso é o que faz um texto subsistir no imaginário humano. Da mesma maneira que percebo as facilidades da Internet também receio que as gerações atuais - e futuras - substituam o prazer da leitura impressa pela digital, mas não creio que essa “facilidade” invalide a leitura do livro de ficção, dentre eles o romance. O romance, ou qualquer outro gênero que exija uma leitura mais complexa, devido ser uma escrita longa, rica e minuciosa em detalhes, em meu conceito não deve ser veiculado na Rede, a não ser em formato de livro eletrônico (E-Book); pois não creio que a leitura na tela de um computador seja o meio mais favorável à apreciação de uma linguagem tão cheia de nuanças contextuais e estilísticas. Porém, o romance está longe de ser um gênero destinado ao obsoleto, muito embora hoje estabeleça estreitas relações com outros gêneros literários e outras formas de veiculação além do material impresso, como é o caso da produção de Ariano Suassuna que dialoga com vários estilos, gêneros e tem sido veiculada também na telinha da TV e do cinema. Aprecio bastante a sua obra, sobretudo devido o retorno e a valorização às velhas fontes orais, o folclore propriamente dito, e a preferência aos temas pitorescos da natureza humana que demanda uma expressão teatral e, simultaneamente, trágica.


10) Fale-me da poesia que você tem contactado recentemente, e de suas aspirações para a Literatura, para você mesma e para nós todos. Agradecemos sua participação, e abrimos espaço para considerações que ache que ficaram de fora, qualquer coisa sobre a qual não tenha tido oportunidade suficiente para abordar. Obrigado.


H.F.: Bem, minhas intenções literárias presentes têm se resumido aos blogs: “HF diante do espelho” (http://fernandeshercilia.blogspot.com/) e “Novidades & Velharias” (http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/). No primeiro, publico exclusivamente textos autorais, sobretudo poemas. No segundo, ainda em expansão, artigos referentes a temas educacionais, especialmente os que tratam de múltiplas linguagens na escola, como o caso da poesia e da música. Além disso, apresento e analiso textos de outros autores, especialmente os que estão divulgando suas escritas em blogs pessoais (Ver a análise do poema Quando chegas de Taninha Nascimento. Disponível em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/03/comentrio-poesia-nos-blogs.html). Há poucos dias, lancei no “Novidades & Velharias” um quadro de entrevistas intitulado “Café literário” e contei com a sua presença, Marcelo Novaes, para expor aspectos de sua produção literária em “O lugar que importa” (Ver a entrevista em: http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/2008/03/caf-literrio-entrevista-com-marcelo.html). Brevemente, o blog receberá a presença, já então confirmada, do poeta português “Vieira Calado”, autor de vários livros de poemas; que explicitará, aos leitores brasileiros, os motivos centrais de sua poética, bem como, demais elementos relativos à sua carreira literária. Esse quadro de entrevistas fora criado a fim de favorecer a divulgação dos autores de poesia nos blogs e, também, ampliar horizontes de leitura para os leitores virtuais. Agora, tratando de intenções a médio prazo, tenho buscado abarcar aceitação junto a editoras a fim de publicar os meus dois livros (Retrato de Helena: 2005; e, Agá-Efe: entre ruínas & quimeras: 2006) que foram veiculados, aqui, no Nordeste numa produção restrita, financiada pelo SESC-RN, e distribuídos nas escolas do SESC e públicas. Também tenho em mente publicar a minha dissertação de Mestrado, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Educação da UFRN (PPGEd), sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes, cujo objeto de estudo é “o lirismo poético-pedagógico de Cecília Meireles em Criança meu amor (1924)”. Outro plano futuro, talvez o que exija maior concentração da minha parte, é materializar um antigo sonho: o de produzir um trabalho especificamente para crianças. Já venho trabalhando com poesia infantil e pesquisando, como pedagoga, o universo da criança e da infância para que um dia possa me aventurar a entrar nesse universo tão delicado e especial como é o mundo da criança e da literatura infantil. No demais, deixemos que as “águas” com seus “espelhos” falem por si... Marcelo Novaes, eu quem devo agradecer-lhe pela boa oportunidade de diálogo em “O lugar que importa”, estendendo o meu agradecimento aos seus leitores. Abraços, Hercília Fernandes ou H.F.


Encerro essa nossa conversa com um texto teu, HF, que poderá ser melhor apreciado ( com sua diagramação e escolha de imagem), junto com muitos outros, no teu blog. Abração!


Alquimia


Dei-te rosas.
Dei-te ventos em procissão.
Dei-te a primavera:
A lâmpada, louca, cega;
Vela de contemplação.


Dei-te o mar.
Dei-te beija-amores.
Dei-te estrelas na tarde.
Dei-te riso, siso, fabuladores...


Dei-te especiarias:
ouro, prata, cristal, pedrarias.
Dei-te cada flor-metal em romaria.
E meu pranto quieto, inquieto,
transmutado em alquimia:


- Deitando-me!...


http://fernandeshercilia.blogspot.com/search/label/alquimia



BIOGRAFIA:

Hercília Fernandes: Pedagoga (UFRN); Pós-graduada em Educação Infantil (UFRN); Mestranda-concluinte no Mestrado em Educação (PPGEd/UFRN/Natal-RN), na linha de Pesquisa História e Cultura da Educação. Coordenadora pedagógica nas redes municipal/estadual de ensino na cidade de Caicó-RN. Escritora com dois livros publicados (Retrato de Helena: 2005 e Agá-Efe: entre ruínas & quimeras: 2006); Em 2006, teve dois textos selecionados em Concurso literário promovido por Arnaldo Giraldo (Edições AG), onde obteve 3◦ lugar na categoria "crônica" e 5◦ na categoria "poesia". Em 2007 participou da Antologia Ritmo Vital, publicada pelas Edições AG/São Paulo; e recebeu homenagem conferida pelo SESC-Seridó por feitos à cultura local, em Feira de Livros promovida pelo SESC-RN.



Entrevista disponível em:

O lugar que importa (Blog de Marcelo Novaes): http://olugarqueimporta.blogspot.com/2008/05/fhhf-diante-de-outro-espelho-fala.html

Novidades & Velharias (Blog de Hercília Fernandes): http://novidadesevelharias-fernandeshercilia.blogspot.com/




A mulher e o Visionário



Metade Pássaro

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estatuas,
Dá de sonhar aos poetas.

A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra,
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.


(Murilo Mendes. In: O Visionário, 1941).





A Mulher Verde

Quando a mulher verde
surgiu,
no meio do fogo que crepitava,
parecia-se mais com
a morte.

Seu uivo agudo, escuro,
escarlate,
fez lembrar manada de búfalos
quando foge.

O som do desespero:
a espera eterna
do eterno passageiro.

A mulher verde no
meio da
lareira,
fez lembrar
o afluente
do Rio Negro,
a trilha por onde
segue a madeira,
derrubada impropriamente,
rumo ao despenhadeiro.

A mulher verde,
em seu uivo e
em seu cheiro de
enxofre,
fez lembrar do verbo
quando sofre o sonho
ausente:

íris sem
olhos,
tronco sem
membros,
boca sem
dentes,
dorso membranoso como
o de um
lagarto;
timbre e dicção
de dar nos
nervos.




(Marcelo Novaes)




Maria Clara: por Hercília Fernandes


Maria Clara
Clara
Alva
rara Maria.
Ria
Ia
Subia
clara à luz do dia.


Minha cara,
Clara minha!


Doce flauta,
serena,
silencia.
Minha causa
fada minha!

Rara
tão alva
Clara,
tanto bem,
Maria!








Texto extraído do blog "HF diante do espelho" (http://fernandeshercilia.blogspot.com/2008/03/maria-clara.html) by Hercília Fernandes.

Caê não cai: por Marcelo Novaes


Não mais
festivais,
nem praças-da
alegria-alegria.
Nem carnavais,
como aqueles de
antes.
Não mais cirandas,
bandas, nem passeios
ingênuos
nas rodas
gigantes.
Agora, é só play-ground,
Play Center e Bungee
Jump.
Não mais nadar contra a
corrente,
nem voar andar voar flutuar
contra o vento,
sem lenço e sem
patente.
Caê já é terceiro
-tenente,
aspirante a
Coronel
Antonio
Bento.
E dizem que não
cai.
Dizem que não toma
vaia.
Dizem: tomara-que
-caia.
Dizem que ele usou
saia,
mas não usa
mais.
Dizem que é quase
calmo,
quando
fala; mas não gosta de
coro, quando canta
no palco.
Caê é índio
com cara
-pálida:
gosta de
carne
dura,
e pele
clara,
ou
escura.
Não para de
compor, e acha
pérolas raras no mar de
Salvador.
Encontra bolhas e belezas
flutuando no vapor barato,
mama nas tetas das vacas
profanas,
e sai ileso.
Não lhe roubam cheque nem
dinheiro. Tem sorte.
Sei que estica a língua até onde
pode,
quase fala
latim.
Estica e roça na
língua dos
grandes
autores.
Explode eclode implode
sambódromo e
Hollywood.
É sempre a mesma
fera,
na voz dos negros do
Harlem, ou de Elza
Soares.
Desnuda aponta apresenta
tecnologias da
linguagem,
canta pinta e borda
som-e
-imagem,
na ponta da língua,
nos trejeitos,
no vibrato da
voz.
Representa, quando
canta,
cenas de trovador
cosmopolita
antropofágico
tropicalista
hiper-urbano,
evitando clichês,
crayon e giz de
cor.
Prefere óleo e
acrílico, materiais
duráveis ou
definitivos.
Queria mesmo era ser
escultor.
Caê vai encarar toda
ofensa,
defender nos tribunais
o direito de ser estrela,
e não
encaretar.
É mau ator, quando se
aventura:
paródico,
hiperbólico,
parabólico
-camará,
como outro baiano cantor,
que não sabe atuar.
Mas é primo-irmão de Glauber
Rocha, num parentesco de alma.
E canta bem, em espanhol, num filme de
Almodóvar.
E tudo faz pra ficar odara.
Tomara Deus, mesmo,
que Caê
não caia.
Nunca.





Texto extraído do blog “O lugar que importa” (http://olugarqueimporta.blogspot.com/2008/03/ca-no-cai.html) by Marcelo Novaes. Autorizado pelo autor para postagem.

Clara: Caetano Velloso



Quando a manhã madrugava
calma alta clara
clara morria de amor.


Faca de ponta
flor e flor
cambraia branca sob o sol
cravina branca amor
cravina e sonha.


A moça chamava Clara
água
alma
lava
alva cambraia no sol.


Galo cantando cor e cor
pássaro preto dor e dor
um marinheiro amor
distante amor
e a moça sonha só
o marinheiro sob o sol
onde andará meu amor
onde andará o amor
no mar amor
no mar ou sonha.


Se ainda lembra o meu nome
longe
longe
longe
onde estiver numa onda no mar
numa onda que quer me levar
para o mar de água clara
clara
clara
clara
ouço meu bem me chamar.



Faca de ponta dor e dor
cravo vermelho no lençol
cravo vermelho amor
vermelho amor
cravina e galos.


E a moça chamada Clara
clara
clara
clara


alma tranqüila de dor.






Poema retirado do livro: Palavra & Arte: literatura, gramática, redação (1996).


Florbela Espanca


Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo ! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho ... E não sou nada! ...



Ser poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
é condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!



Eu ...

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!



Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar!Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...




Textos extraídos do site “Jornal de poesia”: http://www.revista.agulha.nom.br/flor.html