Todas as cartas de amor são
ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas.
Álvaro de Campos,
heterônimo de Fernando Pessoa.
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E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente!
Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades,
e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas,
como um corpo ressequido que se estira num banho tépido;
sentia um acréscimo de estima por si mesma,
e parecia-lhe que entrava, enfim, numa existência superiormente
interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente,
cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria
de um luxo radioso de sensações!
Eça de Queirós,
fragmento textual de O primo Basílio.
Essa não é uma carta de amor. Não é uma expressão de afeto, nem mesmo o provérbio de uma oração parafraseada por minha solidão.
Essa não é uma construção advinda de uma inspiração, nem, tampouco, um soluço, um goto em meu coração.
Essa não é uma escrita de reflexão. Não é objeto da ciência, nem da religião. Essa é o nada, é o tudo, é apenas palavra.
Palavra que tomo emprestada, que revitalizo quando me tomam os ouvidos as vozes sufocadas. Palavra que desmereço: nego, imito, transponho, aqueço.
Essa é apenas palavra ritmada: palavra frouxa, palavra desenfreada. É apenas mais uma das minhas cartas sem causa. Palavra que bebo, vomito, redimensiono quando acordada.
Não é tragédia, não é fábula. Não é conto, não é novela. Não é romance, nem poesia. Não é epopeia, nem libreto de cavalaria. Não é realidade, nem fantasia. Não é letra de música, não é alquimia.
Pois essa carta não é uma carta de amor, nem objeto de estudo. Não é uma expressão de dor, nem mesmo um sussurro desengonçado.
É apenas palava. Palavra que desencaminho ao leitor.
Palavra que me veste os olhos d’alma e se deforma em vale de lágrima.
É apenas palavra, palavra que não se importa com as entrelinhas e se permite sozinha perder-se em curvas-linhas.
É apenas palavra. Palavra que não se cansa de se achar, de se perder, de chorar... Palavra que colore paisagens secretas, que fecha, empurra e abre portas entreabertas.
É apenas palavra. Palavra que se desfigura, não tem medo de sol nem de chuva; nem tem a pretenção de pretender, nem a falsa modéstia de não convencer...
Mas não é uma carta de amor. Não é um sonho, nem a quimérica ideologia de um suposto autor.
É apenas palavra. Expressão reflorescida no corte, na primavera, na dor. Mesmo assim não é uma carta de amor!
É apenas palavra. Palavra que pinta lacunas nas laudas. Palavra sem cauda que ora é notícia, ora vira fumaça.
Por ser nada e ser tudo não necessita de motivo ou de refúgio, apenas de um entretenimento no posfácio e de um sintagma bem elaborado no prefácio.
Por ser nada e, quase, ser tudo, leitor, dispensa referências e glossário, pois essa carta – que não é de amor – só precisa de um bom vocábulo!...
*Um bom vocábulo, texto adaptado pela autora para postagem em o Maria Clara, extraído do livro: “Agá-Efe: entre ruínas e quimeras” (Fernandes, Hercília: 2006, p. 83-85).
**Arte: José Ferraz de Almeida Junior.
13 comentários:
Interessante o texto do seu livro, Hercília.
Beijo.
Oi Hercília,
Bela e rica postagem. O seu texto tão apropriado ao trecho do livro " O primo Basílio " , trata da palavra com eloquência e riqueza de detalhes, apontando para a versatilidade, as múltiplas e infinitas formas de articular a palavra escrita. Gostei muito. Bj.
Meninas,
me alegra que tenham apreciado.
Um forte abraço em vocês!
H.F.
Hercília!
Fernando Pessoa, como sempre acerta. São ridículas as cartas de amor, mas devem servir para a auto afirmação.
Seu texto está maravilhoso, num momento onde a "palavra" é a bola da vez. Como se aqueles que a manuseiam, nunca tivessem sabido da importância e do bom uso dela.
Excelente!
Beijos
Mirze
Oi Hercília, adoro cartas, amei o texto!
Hercília,
q lux de texto. bj
Mirse,
Albuq,
Dri
fico feliz que tenham gostado do post e dos conteúdos desta não carta...
Beijos em vocês,
H.F.
É e eu que pensei que iria ler uma carta de amor, bastante interessante o texto.
Bjs.
Francy's,
agradeço a sua leitura, visita e palavras expressas.
Sinta-se bem vinda em o Maria Clara!
Beijos,
H.F.
Bom texto! - bem urdido e multifacetado! ;)
Obrigada, Lou.
Um beijo, Amiga!
H.F.
Achei muito interessante a maneira como sua não-carta-de-amor dialoga com os textos consagrados que a precedem. De certa maneira a sua tbém é uma carta de amor - amor pelas palavras. Muito boa a prosa!!! Bjs
Obrigada, Maria Paula.
Também aprecio muito a sua criação.
Beijo,
H.F.
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