Poranduba dialética

Nicole Kidman em DogVille (co-produção europeia, 2003), de Lars von Trier.

Nina Rizzi

"Quando submetemos ao exame do pensamento a natureza ou a história da humanidade, ou a nossa própria atividade mental, o que se nos oferece, em primeiro lugar, é o quadro de uma confusão infinita de relações, de ações e reações, onde nada permanece o que era, onde era, como era, onde tudo se move, se transforma, vem a ser e passa."

- Friedrich Engels, no clássico panfleto O Sr. Eugen Dühring perturba a ciência
- Anti-Dühring
-, em que faz, pela primeira vez, e com perícia de mestre,
uma exposição completa e clara do materialismo dialético.

Primeiro, eu achei que me viria com flores. Talvez margaridas, que me cheira alegre e de redundâncias de caiofa. Podia até ver, como em retratos, de miolos amarelos, redondos, largos, de telas pontilistas. E pétalas alongadas, gordas ao centro e se afunilando em alvidez pra fora.

Depois, pensei em maçãs. que talvez me cresse professorinha Ellena. De alunos dos morros, descalços, das terras ocupadas. Sem maçãs. E gosta de maçãs. Que são práticas e não precisam descascar, só comer. E pude as sentir o gosto. Não àquelas arenosas argentinas, mas as fuji que não são asiáticas. Que estalam às minhas mordidas cavalares e sangram doce. Me saltavam suas formas quase redondas, não fossem mais que terra; quase tão vermelhas, não fossem mais que pêra.

Por fim, pensei nos lápis. que, miserável, mais que por condição, só escrevo em papel. Que a maresia dos meus dias acabam com minhas canetas em menos de uma semana, mais tempo que meus papéis. Lápis quadrados. Que pressentia minhas suadas mãos e as fatais escorregadas. 5b, que, então, seria estímulo a mais pra superar tamanha frustração por não pintar.

Mas não vieram as margaridas, que giro sóis que sabe melancolia, apesar de toda extroversão. Que não arrancaria da boa terra a flor só pra me alegrar, escravo da luxúria.

E não vieram as maçãs. Elas prosseguiram sem qualquer mudança mecânica. Continuaram maçãs sem um dia terem sido e tendo deixado de ser. Eram maçãs verdes que se tornaram maduras porque deviam amadurecer, que antes mesmo de estarem maduras, eram maçãs e deviam amadurecer autodinâmicas. e antes foram flores, e antes botões e macieiras na primavera. E caíram, rolaram, apodreceram, se decompuseram liberando sementes que, se tudo seguiu bem - conforme as condições do clima, do solo, a ação recíproca que encadeia os processos -rebentos, depois árvores.

Não, tampouco os lápis vieram. E nem sei desenhar mesmo e as letras desaparecem peremptórias. Os lápis não foram afiados, permaneceram inteiros e talvez nunca tenham existido. A prancha nunca saiu da madeira, que nunca deixou de ser árvore e pôde então florescer e frutificar maçãs. Que não sofreram a (injusta?) justaposição da estranha intervenção humana.

Mas também não fui eu com minha impetuosidade, o pulo, o beijo, as pernas na cintura, braços no pescoço no estrangulamento da paixão. Eu fui vontade. E fui escolha. Eu olhos moles, eu transbordada de turbilhonamento. E finalmente mulher.

Me veio sujeito histórico, 'inda que beloburguês. Cavalo. Com olhos de me enxergar, palavras, e ouvidos de me querer. Sem retratos-metafísica, idealismos ignorantes. Antes, em movimento-cinema, tudo interligado, em processo, transitando ponte em mim. Me principiando, me sendo e me partindo. E me iniciando. Veio mais que beleza e rumores, noite e azul. Anil lenço de me conter o choro. Grande mão de me limpar os lábios caudalosos.

Sim, evidente, antes de sermos nós, somos um. E não somos fixos, mas movimento de contrárias, fim de um processo e começo de outro, sempre em vias de nos transformar e desenvolver. E somos nós. Dialéticos.
*

7 comentários:

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Oi Nina, quando comecei a ler me pareceu retornar a minha aula de filosofia, quando discutíamos 'dialética'. Fui olhar os marcadores e lá está Engels, Marx e Materialismo dialético, pronto me situei, realmente estava no meio da filosofia, numa observação do homem, da sua mentalidade, da ciência, das suas relações com o todo que faz parte, em meio aos nossos processos de transformação, continua transformação.

bjs

Unknown disse...

Que beleza, Nina!

As anterior-idades que nos precedem, em frutos, em lápis em flores e em seres.

Filosófico e profundo, nem por isto de leitura agradável e perceptível.

Encantada fiquei.

Parabéns, NINA!

Beijos

Mirze

Adriana Godoy disse...

E somos nós girassóis loucos a procurar a luz...a dialética...somos dialéticos? Terxto mais porreta...Engels que se cuide. Bj

Anônimo disse...

Suas alusões à realidade por meio de metáforas de fantasia me levam além. Muito bom te ler, Nininha.

Beijos.

Lou Vilela disse...

Belo olhar filosófico!

Bjs

Renata de Aragão Lopes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Renata de Aragão Lopes disse...

Entre o que aguardávamos
e aquilo que recebemos,
cá estamos.

"não vieram as margaridas,
que giro sóis
que sabe melancolia"

É, a partir do desencontro,
que passamos a nos encontrar.

Lindo texto, me-Nina,
que se deparou com alguém
que lhe tinha ouvidos pra querer!
(ADORO ISSO!)

Beijo,
Doce de Lira