in tátil e publicável
nina rizzi
eu reli àquela carta.
você tem razão:
há na minha espera algo dilacerante.
e comovente, claro.
*
George Grosz (alemão, 1893-1959), Toilette.
Lado A
Nina Rizzi
Eu não podia entender porque ninguém fiasse meu amor. Do mesmo modo ninguém podia entender tal amor. E isso me doía tanto que mesmo nos píncaros azulados da paixão ficava esse ranço, meio que escondido por entre minhas pernas.
Você gostava tanto daquele meu pelo branco que surgiu do nada bem no meio da minha testa e que era motivo de piada entre suas jovens amigas. Sei que nessa altura do campeonato esses preconceitos que me afligiam não têm a mínima importância. De tudo que nós amamos: o que foi, o que foi sem ter sido, o que viria a ser. Mas eu tenho guardado toda a angústia por tanto tempo que hoje não deu pra engolir. Vomitei naquela privada onde se acumulou a água parada de todos esses anos. E quando fui dar a descarga a caixa d'água despencou. Então me lembrei daquele dia, quando tinha a carne ainda tão tenra e me desejava, me desejava. As pessoas faziam festa na sala e a gente no banheiro. Você levantou minha perna direita bem alto e afastou minha calcinha. E como não te aguentasse o peso, escorei a perna na caixa d'água do sanitário e ela espatifou em cima da gente. Saímos dali feito pintos molhados. Mas você era o galo, o grande galo, e eu só mais uma galinha que iria chocar, histérica.
Foi isso, um evento tão corriqueiro a disparar em mim remorsos vãos. Se eu fosse crente, me arrependeria, embalava Matheus e recomeçava, como em missão. Mas o que resta aos ateus senão essa culpa raskolnikofiana de quem faz o que devia ser feito, a favor da matéria e que, no entanto, dilacera?
Dilacerante. Eu abrir as mãos assim e pum: te ver partir. Era Fracklin seu nome? Thiago, Madalena? que importa, se seus cabelos eram negros e eu não pude te dar um filho, não é mesmo?
Se eu não tivesse colocado assim a minha vida em tuas mãos? outra pergunta inútil de tão anacrônica. Talvez não fossemos nós e o peso dos anos, mas só aquela casa, como um costume antigo e obsoleto, mas que não temos a coragem de quebrar. Mais que a mim, estava acostumado àquela casa. Até o fatídico dia em que já na porta viu as cartas impublicáveis extraviadas e coladas por todos os cômodos e depois indo pelos ares, puro fogo, caindo por terra e me deixando só a água.
Sim, já foi e vai passar. Vai sim. Eu vou me lembrar de como achava charmosos meus cabelos brancos, macia a minha pele enrugada, sensuais as marcas de senilidade em minhas mãos. Eu sei nadar muito bem, mesmo contra a corrente. Vou te lembrar em alto-mar, onde me puxa até as profundezas e não sou mais vil. Da terra, só ruínas que, em breve, boia.
*
8 comentários:
Oi Nina, que forte essa carta, ao ler senti sentimentos fortes, sentimentos de espera, de amor, de dores...
muito lindo,
bjs
Nina!
Intenso e belo!
Chega a doer.
Fantástico!
Beijos
Mirze
Deixou-me em frenesi esse texto!
Beijos, Ninaaa.
MeNina,
Assombroso o teu texto. Ardidoce, denso, afoguei-me em ternuras. Tonturas tantas.
Ficaram-me cravadas as palavras: "Vou te lembrar em alto-mar, onde me puxa até as profundezas e não sou mais vil".
Roberta
http://sedemfrenteaomar.wordpress.com
Nina,
comovente, claro.
Gosto dessa singularidade. ;)
Beijos
Belos textos, Nina.
Como nos diz a professora de teoria literária Ana Santana - na apreciação crítica da obra "Maria Clara - uniVersos femininos", in prefácio, que brevemente estará a disposição dos leitores -, a "espera" perpassa a vida das mulheres e, em seus versos, tansforma-se lindamente em matéria de poesia.
Lindos textos, muito aprecie o post: parabéns!
Beijos,
H.F.
"Belo, é tudo quanto agrada desinteressadamente."
( Immanuel Kant )
Postar um comentário