fuga
nina rizzi

minha voz, quando te diz, quanto te canta:
"te amo como se ama um passarinho morto",
sabe?

a gente quer pegar na palma da mão, levar ao rosto,
afagar e chorar:
- voa, voa, passarinho morto.
*

do túmulo de Oscar Wi
lde.

gertrude
nina rizzi

fica calma, meu amor, na semana que vem estaremos perto. perto é juntos. na semana que vem. eu e você perto e juntos na semana que vem. the rose is the rose is the rose.

mas é lamentável que o telefone não tocasse. que você tenha jogado fora meus números. grandes demais, kitsch demais. era um sonho só. de dormir até. que em alguns dias eu vou passear por aqueles sebos e cinemas antigos e encontrar aquela mulher que nos pede leite nos becos de bandeira. a minha cabeça vai doer e você não vai estar lá pra me mergulhar em espuma quente e me ouvir as histórias de quando eu era menina e corria pra ver o vento.

é terrível que nossas vidas tenham se interrompido feito as paisagens que serram e nos metem prédios. a história tão bonita que de lembrar derramam. dos girassóis que me entregava sem arrancar do pé, das begônias que eu dava pra vendedora de flores viciada com frio naquela esquina quente da praça da saudade. daquelas noites estreladíssimas em que te encontrava na orelha de van gogh. me derramam, me derramo.

e eu gostava muitomuito, de um dia voltar a tocar o céu da tua boca com os meus dentes. eu passaria horas só contemplando esse teu olhar. e mais um cem-horas a te abraçar. pra que mais? você me perguntava e eu só podia dizer que sempre quero mais, que meu amor é urgente e atravessado de ânsias e você me entregava esse teu risinho que se parece um choro sem lágrimas em banheira fervente nas casas da glória.

essas letras todas te despencando parece drama demais, afetado demais? mas eu me lembro, eu me lembro que você queria me dar um filho, que a gente comia um quilo de açaí e não me sobrava fome pra o pão integral com queijo branco. eu lembro que eu era linda ao teu lado, meus olhos verdejavam os mais puros campos dos jogos infantis e que você jurou brincar de cíclope comigo.

é verdade. eu sabia que aquelas madrugadas de abril eram nosso fim. eu sabia que indo ao teu encontro era um adeus, um aceno, um talvez nunca mais. mas nunca é tanto tempo, mas nunca é tão doído, mas sem você eu não sei mais eu.

olha, eu reconstitui meu fígado pra te entregar. nenhum resquício das mais de 4.700 substâncias tóxicas, nenhuma gota de álcool etílico. só o fígado vermelho do meu sangue que te vai com a minha memória em troca da minha certidão de nascimento que te ficou. que sem ela não posso tirar a segunda via do registro geral e é como se eu não existisse. parece muito? mas esse muito é tão pouco, é tão pouco...
*

9 comentários:

Letícia Palmeira disse...

Gostei pacas. Bom ler prosa e poesia tudo junto.

E o telefone não toca mais. Números mudados.

Até.

Márcia de Albuquerque Alves disse...

que mais dizer? LINDO descrevo, lindo!

Unknown disse...

Lindo, Nina!

Quero aprender a fazer voar um passarinho. Morto.

"Parece muito? E esse muito é tão pouco...."

Tinha que ser teu,

Beijos

Mirze

Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ NARA CABRAL Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ disse...

lindo

Anônimo disse...

Para quem se doar é só o começo, já é bastante; imagina para quem fica aqui, só como espect(ro d)ador.

Demais, me Nina!

Beijo.

Francys Oliva disse...

Cá estou para te desejar um bom final de semana. bjs

Lou Vilela disse...

Um primor, Ninuska!

Bjs

Carla Farinazzi disse...

Lindíssimo, Nina

Concordo com a Letícia. É bom ler prosa e poesia. Perfeito teu texto. Maravilhoso. Me lembra tantas coisas... "é terrível que nossas vidas tenham se interrompido feito as paisagens que serram e nos metem prédios."

Beijo

Carla

Hercília Fernandes disse...

Lindo post, Nina.

Verso & prosa bastante harmoniosos em que se sente a intensidade dos sentimentos, porém sem amarras.

Beijos,
H.F.