"O desenlace não é nada engraçado" - Nietzsche

Fotografia sem título de Henri Cartier-Bresson.

LADO A
Nina Rizzi

Eu não podia entender porque não fiasse o amor. Do mesmo modo ninguém entendia, amor. E isso me doía tanto que mesmo nos píncaros azulados da paixão ficava esse ranço, meio que escondido por entre as pernas.

Você gostava tanto daquele meu pelo branco que surgiu do nada bem no meio da minha testa e que era motivo de piada entre suas jovens amigas. Sei que nessa altura do campeonato esses preconceitos que me afligiam não têm a mínima importância. de tudo que nós amamos: o que foi, o que foi sem ter sido, o que viria a ser. Mas eu tenho guardado toda a angústia por tanto tempo que hoje não deu pra engolir. vomitei naquela privada onde se acumulou a água parada de todos esses anos. E quando fui dar a descarga a caixa d'água despencou. Então me lembrei daquele dia, quando tinha a carne ainda tão tenra e me desejava, me desejava. As pessoas faziam festa na sala e a gente no banheiro. Você levantou minha perna direita bem alto e afastou minha calcinha. E como não te aguentasse o peso, escorei a perna na caixa d'água do sanitário e ela espatifou em cima da gente. Saímos dali feito pintos molhados. Mas você era o galo, o grande galo, e eu só mais uma galinha que iria chocar, histérica.

Foi isso, um evento tão corriqueiro a disparar em mim remorsos vãos. Se eu fosse crente, me arrependeria, embalava Matheus e recomeçava, como em missão. Mas o que resta aos ateus senão essa culpa raskolnikofiana de quem faz o que devia ser feito, a favor da matéria e que, no entanto, dilacera.

Dilacerante. Eu abrir as mãos assim e pum: te ver partir. Era Fracklin seu nome? Thiago, Madalena? que importa, se seus cabelos eram negros e eu não pude te dar um filho, não é mesmo?

Se eu não tivesse colocado assim a minha vida em tuas mãos? outra pergunta inútil de tão anacrônica. Talvez não fossemos nós e o peso dos anos, mas só aquela casa, como um costume antigo e obsoleto, mas que não temos a coragem de quebrar. Mais que a mim, estava acostumado àquela casa. Até o fatídico dia em que já na porta viu as cartas impublicáveis extraviadas e coladas por todos os cômodos e depois indo pelos ares, puro fogo, caindo por terra e me deixando só a água.

Sim, já foi e vai passar. Vai sim. Eu vou me lembrar de como achava charmosos meus cabelos brancos, macia a minha pele enrugada, sensuais as marcas de senilidade em minhas mãos. Eu sei nadar muito bem, mesmo contra a corrente. Vou te lembrar em alto-mar, onde me puxa até as profundezas e não sou mais vil. Da terra, só ruínas que, em breve, boia.
*

fuga
nina rizzi

minha voz, quando te diz, quanto te canta:
"te amo como se ama um passarinho morto",
sabe?

a gente quer pegar na palma da mão, levar ao rosto,
afagar e chorar:
- voa, voa, passarinho morto
*

4 comentários:

Ana Ribeiro disse...

Que coisa mais tristemente linda...

Hercília Fernandes disse...

Belíssimo post, Nina.
Prosa e poema nos dilaceram a alma, tamanha beleza e profundidade das paisagens, internas e externas, compartilhadas.

Um beijo,
H.F.

Adriana Godoy disse...

Putz, um texto desse e um poema desse é de arrebentar a alma. Ninuska, ainda bem que vc existe. Beijo

Primeira Pessoa disse...

nossa, nina.
que petardo.
poemaço, esse do passarim.